DEZOITO

39 5 1
                                    

O ar gelado das estradas de Versen penetra em minhas roupas. Mesmo que eu me agasalhe e use o cachecol pesado que Orlean ofereceu para mim parece que o frio anda sobre a minha pele e a morde em diversas partes do meu corpo.

A maioria dos soldados já entrou nas tendas.

Eu prefiro ficar um pouco mais em frente ao fogo esticando as mãos descobertas. Estou cansada. Tanta coisa aconteceu em tão pouco tempo e dentro de mim uma corrente de água sobe aos poucos em um compartimento que está prestes a vazar...

A fogueira está quentinha, ao menos, e eu volto a sentir meus dedos.

Abaixo minha testa até os joelhos depois de um tempo e fecho os olhos. Quando estou quase pegando no sono uma mão toca de leve em minhas costas e eu levanto a cabeça.

É Yur.

Falo um oi baixo e volto a encostar a cabeça em minhas pernas.

Yur assente. Ele está tão agasalhado quanto eu. Ele afasta seu sobretudo grande e cai sobre o tronco (ao meu lado) que está servindo de banco para todos no acampamento. Em suas mãos está uma garrafa de alguma bebida escura envolvida em um rótulo de papel.

Ele estica em minha direção, mas eu nego.

— Achei que gostasse de beber — ele pontua.

Bem, é... Não gosto, mas tive que inventar uma pequena mentira.

Pego a bebida de suas mãos e tomo um gole. O líquido tem gosto de uva verde e esquenta meu corpo por dentro e eu mal sinto o álcool. Essas são as piores.

— É boa — digo mexendo o frasco.

Ele sorri e o pega de volta.

— Eu nem vi quando você saiu da festa, amiga. — O jeito que ele falou amiga soa quase como um russo tentando aprender português. A bebida deve desacelerar sua língua.

Eu não respondo e Yur volta a beber.

Não quero e nem posso falar sobre isso.

— Tem alguma dica de guerra atrasada para mim? — Ele pergunta limpando a boca com as costas da mão — Eu não tive um sonho muito bom na noite da festa e uma palavra sua realmente me faria bem.

Sua voz quis se manter neutra, mas na última sílaba treme.

Medo. Até soldados como ele tem medo.

— Não é uma dica, mas minha mãe dizia que se eu falasse o sonho para alguém eu não sonharia mais. Por que não me conta?

A fogueira crepita a nossa frente e Yur limpa a garganta.

— Eu sonhei que estava no campo de batalha em Ziern. Haviam muitos de nós no chão. Todos mortos. Estava chovendo e minhas pernas estavam enterradas em lama até quase os joelhos. Eu segurava um machado ensanguentado em minhas mãos e...

— E? — Insisto.

A fogueira o ilumina criando formas esquisitas no reflexo de seus olhos úmidos e eu quase sinto pena dele antes mesmo que me conte qualquer coisa.

— Eu não estava do lado certo da batalha. Estava do lado do inimigo. E eu matava Orlean. — Yur passa as mãos pelo próprio rosto como se para se livrar de lágrimas invisíveis — Eu nunca me perdoaria se traísse meus amigos. Eu nunca faria isso.

Ok. Isso é muito para absorver.

— Está tudo bem. — Digo — Nem sempre o que sonhamos condiz com nosso caráter. Eu já cometi crimes em sonhos e vi muitos acontecendo também.

O Portal para VersenOnde histórias criam vida. Descubra agora