Netty

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Uma folha em branco.

Era tudo o que tinha em cima da mesa onde estudava aos 9 anos. Olhei ao redor da sala e todos desenhavam felizes com seus lápis de cores, canetinhas e aquarela.

Observei com o pescoço esticado os detalhes da menina de cabelos dourados ao meu lado. Cabelos longos loiros, vestido esvoaçante e coroa de princesa ou talvez rainha, realmente não me importava.

Meus colegas de classe tinham a mãe presente em toda a sua pequena vida, mas eu, bom... eu só tinha um pai.

O melhor do mundo e ele tocava guitarra.

Posso desenhar ele e dar de presente como dia das mães. Ele não vai se importar.

Alinhei os lápis em cima do papel alegremente desenhando-o. A professora observava andando com as mãos entrelaçadas nas costas os desenhos, elogiando cada detalhe e cuidado.

Seu rosto era suave e os dentes brancos perfeitamente alinhados brilhavam quando via o capricho de cada um.

Ao passar por mim, ela analisou com atenção.

O rosto suave foi substituído por um semblante decepcionado e meus olhos alegres observaram confusos. O que estava errado?

— Nettles... Seu desenho é lindo, mas não é o dia dos pais.

— Sim, professora, mas não tenho mãe.

Grandes olhos miravam em minha direção, curiosos pela informação recebida.

— Você não lembra dela? Tenho certeza que seu pai adoraria um desenho de sua falecida mãe.

— Eu... Eu não conheço. Não lembro.

Os olhos azuis caíram em condolências sentindo pesar pela história. Isso nunca me deixou triste, meu pai era perfeito em todos os quesitos, poderia entregar o presente, ele era uma boa mãe também.

— Querida, infelizmente você não pode desenhar seu pai, precisa ser uma mulher, você não tem avós? Tias?

— Só tenho meu pai.

Meus colegas não paravam de olhar e algumas risadas ecoaram pela sala deixando-me constrangida. As lágrimas encheram os meus olhos.

"Ela foi abandonada" ouvi uma criança cochichar para outra.

Não fui abandonada! Meu pai sempre me quis!

Queria gritar, mas as palavras não saiam. Um desespero preencheu meu corpo e minhas mãos taparam os ouvidos abafando qualquer som de julgamento e risadas.

— PAREM! PAREM! — gritava com os olhos fechados, agachando no canto da sala e chorando exasperadamente.

***

A diretora me acolheu em sua sala com um suco de laranja e um pedaço de torta salgada. Debrucei na grande mesa de madeira e tentei me distrair com as prateleiras de livros com histórias confusas e nomes estranhos.

O que fiz de errado?

A porta estava entreaberta e passos acelerados reverberaram pelo corredor.

— Onde minha filha está?

Essa voz. Meu pai, ele veio me salvar como sempre fazia.

Levantei animada pegando a mochila rosa com detalhes de princesas e tecido brilhante.

Quando enchi os pulmões para chamá-lo, a porta foi trancada por uma mão desconhecida. Encostei tentando ouvir a conversa.

Será que papai vai me odiar?

— Sr. Targaryen não precisa se alterar...

— Não preciso? A primeira coisa que fiz ao matriculá-la nessa escola foi contar sua história. Deixei os pontos claros em como o tema sobre sua mãe era sensível e vocês ignoram as dores de uma criança e a humilham na frente de todos os colegas da sala?

— Nossa intenção era incentivar Nettles a observar outras mulheres em sua vida que mereciam a homenagem.

— Não existem outras mulheres!

Era difícil ver papai tão nervoso. Sua voz sempre suave e linda quando cantava ou contava histórias antes de dormir.

— Nós sabemos que o processo de adoção é um momento delicado e a criança sofre sem a mãe e com as diferenças físicas do pai.

— O que a senhora está insinuando?

— Ela não se parece com você Sr. Targaryen, deveria contar a verdade e fazê-la superar esse fato em sua vida.

Olhei para a minha pele, os cabelos escuros e encaracolados.

Eu não pareço com meu pai.

Fui abandonada? Não era sua filha?

Sou apenas uma decepção?

— Eu quero minha filha agora!

— Sr. Targaryen...

— Uma carta de intimação chegará nessa instituição e espero que compareça para se pronunciar sobre as injúrias e crimes cometidos.

— Não precisa de medidas drásticas, podemos resolver com uma conver-

— Minha filha... AGORA!

Me distanciei da porta esperando os olhos tristes do meu pai ao saber o que fiz. Ele ia me abandonar também. Uma decepção, eu era apenas uma grande decepção.

A porta abriu e ele sorriu deixando qualquer tristeza longe. Corri para os seus braços e envolvi minhas pernas em seu torso e meus braços em seu pescoço, chorando até soluçar.

Ele acariciou os meus cabelos balançando de um lado para o outro cantarolando uma melodia que me acalmava.

— Papai está aqui, sempre estarei com você.


***

Encostada no batente da porta admirei meu pai brincando com Aegon no jardim. Corriam de um lado para o outro arrancando risadas quando meu irmão não conseguia alcançá-lo.

Meu pequeno demônio prateado cai na grama fofa e se assusta com a queda chorando estrondosamente.

Papai corre em seu auxílio, abraçando-o e limpando o joelho sujo, mas felizmente sem arranhões.

— Papai está aqui, sempre estarei com você.

A emoção ao ouvir a mesma frase faz meus olhos encherem de lágrimas. Saber que ele tratava exatamente igual seu filho caçula deixava meus medos de lado e me dava certeza que ele sempre me amou.

Mesmo não sendo do mesmo sangue.

"Daemon não é seu pai biológico" ela disse com convicção. A única certeza que sempre tive, era que apenas minha mãe me abandonou e saber que nenhum dos progenitores me quiseram, fez meu estômago revirar.

Precisava ter certeza e apenas uma pessoa poderia confirmar.

— Netty, Netty! — Aegon apontava seu dedo rechonchudo em minha direção.

— Agora chega silenciosa e misteriosa observando as travessuras de seu pai? — ele caminhou com Aegon em seus braços, agitado com as mãos estendidas pedindo colo.

— Netty! Netty!

Levantei seu corpinho cheio de dobras e fiz cócegas em sua barriga fazendo-o rir e se contorcer.

— Preciso fiscalizar se a sua carteirinha de ótimo pai continua válida.

Ele ergue uma sobrancelha com os braços cruzados e olhar ofendido.

— Blasfêmia! Sou o melhor pai nesse caralho de mundo! — ele enchia o peito confiante e presunçoso.

Caralho! — Aegon repetiu eufórico enrolando os dedos em meu cabelo crespo — caralho, caralho, caralho.

O desespero nos olhos violetas dele alegraram minha criança interior. Coloquei Aegon no chão e ele correu para dentro de casa não parando de repetir a nova palavra que papai ensinou.

— Rhaenyra vai me matar! — correu atrás dele tentando evitar chegar aos ouvidos de sua esposa.

Caralho, caralho, caralho, caralho. — ecoando pela mansão

— DAEMON! — a voz de Rhaenyra amedrontava qualquer guerreiro experiente.

— Foi a Netty, essa menina chegou falando palavrão!

— O quê?

***

A viagem de lua de mel estava marcada para daqui a dois dias. Me encarreguei de cuidar de Aegon e visitar os Velaryon enquanto estava de férias da faculdade.

No entanto, antes dessa pequena missão, precisava visitar uma pessoa indesejada.

— Não vou demorar! Voltarei ainda hoje.

— Onde exatamente você vai? — pai sempre desconfiado.

— Uma amiga está doente no hospital e gostaria de vê-la.

Ele semicerrou os olhos desconfiado com o meu discurso.

— O hospital fica próximo do aeroporto — coloquei a bolsa de lado e verifiquei os documentos despretensiosamente — quero vê-la antes da doença se agravar.

— Estou indo para o aeroporto, se quiser carona, posso te deixar na porta.

Ótimo! Agora Alyn gostaria de ser o salvador e cavaleiro de armadura reluzente.

Meu pai esperou minha resposta com o sorriso no canto da boca adorando a situação.

— Não Alyn — respondi sem disfarçar meu incomodo — Posso ir sozinha!

— Deixe de ser uma pirralha — aproximou pegando a chave do carro em cima do balcão — apenas uma carona, não vai doer seu ego ferido.

Ele só pode estar de brincadeira, agindo como se tudo o que passamos poderia ser esquecido facilmente como um problema estúpido de adolescente.

A situação estava estranha com meu pai desconfiado para onde exatamente iria. Se negasse mais uma vez a oferta de Alyn poderia gerar mais perguntas questionadoras dele.

Uma carona não iria causar um problema.

Engoli meu orgulho e o segui entrando em seu carro alugado.

***

O silêncio constrangedor era melhor que tentar iniciar conversas fiadas apenas fingindo continuar a amizade depois de nosso término.

Meus olhos fixaram a janela observando o movimento das ruas na velocidade moderada dele.

— Quer parar em algum lugar para comprar um presente?

A voz dele me assustou arrepiando algumas partes do meu corpo, reagindo o quanto o tom que usava era bonito. Ele sempre teve uma voz linda.

— Não, é apenas uma visita rápida. — respondi sem desviar o olhar da janela.

O carro para no farol vermelho e sinto seus olhos me observar preocupado.

— É grave a doença da sua amiga?

— Porque diabos se preocupa? — grunhi nervosa olhando-o — Não consegue apenas dirigir de boca fechada?

Ele sorri irônico batendo as pontas dos dedos no volante.

— Qual é o seu problema comigo?

— Meu problema? Agora se faz de santo como se não tivesse fodido a primeira mulher que viu na rua apenas para me provocar.

— E você não me traiu naquela festa da faculdade?

O farol abre e sua atenção volta para a avenida.

— Não quis fazer aquilo...

— Mas você fez! — ele responde com mágoa em suas palavras — me traiu primeiro.

— Devo ter pena de você? Isso te faz melhor em ter feito o mesmo, em nossa casa?

— Não! — responde limpando a garganta — Agi como um idiota, mas não vou aceitar levar a culpa do fim desse relacionamento. Não fui o único que errou.

O silêncio constrangedor volta

Sim, eu errei, não estava em meu perfeito juízo e apenas agi pelo impulso do momento.

— Daemon quis me matar! — ele continuou — No entanto, o que mais me magoou em tudo, foi saber que você não contou a verdadeira versão da história.

— Você contou?

— Sim! Não em detalhes, mas felizmente ele me ouviu e disse que iria lavar as mãos sobre o que aconteceu e não queria saber de nenhuma história.

Por isso meu pai o convidou para o casamento.

O carro estaciona chegando finalmente ao destino.

Abro a porta agradecendo pela carona sem coragem de encará-lo.

— Netty! — viro olhando-o pela janela — Se cuida.

Ele vai embora deixando meu coração confuso mais uma vez.

***

Prometi que jamais falaria com ela de novo. Não queria vê-la, saber de sua existência e desejei que a morte chegasse lenta e dolorosa para ela.

Porém, apenas ela saberia responder.

Sua cabeça estava envolvida com um lenço estampado de flores escondendo a falta de cabelos pela quimioterapia. Não me viu chegar, permanecendo virada para a janela observando o céu azul.

A enfermeira se aproximou informando a minha chegada.

Ela franze a testa e gira o corpo sem acreditar estar ali querendo vê-la.

Eu também não acreditaria.

A enfermeira se retira com um leve aceno carinhoso.

— Minha filha...

— Nettles, esse é meu nome e você não é minha mãe.

— Pensei que morreria sem vê-la.

— Desejei isso!

Ela se aproxima tentando diminuir o espaço entre nós, estendendo a mão para alcançar a minha.

— Não! — aviso com um passo para trás — Estou aqui apenas para uma pergunta.

Suas mãos se esfregam aceitando apenas essa migalha de atenção.

— Responderei o que quiser.

— Daemon — respirei criando coragem para continuar — é meu pai biológico?

— Não. — a resposta foi rápida, sem hesitação, apenas confirmando o que estava com medo em saber.

— Tem certeza? — odiei a forma como minha voz saiu ferida.

— Absoluta.

Pensei em perguntar porque, porque me abandonou, porque me jogou para a primeira pessoa que aceitou uma criança indesejada.

Porque não me quis como as mães fazem?

Porque me jogou igual lixo?

Não quis perguntar. Virei as costas segurando as lágrimas, odiando saber o que sempre me amedrontou desde criança.

***

Entrei em passos silenciosos com os olhos marejados e desejando apenas dormir e esquecer a minha existência.

Seguindo o corredor, escuto risadas na cozinha e sons de beijos carinhosos.

Eles não param um segundo?

Olhei escondida admirando como meu pai deslizava a mão suavemente entre os dedos de Rhaenyra dançando devagar a canção que saia de seus lábios.

Rhaenyra não parava de sorrir, passando a mão esquerda por cima dos ombros dele, hipnotizada em como sua voz soava apenas para ela.

Tudo o que mais desejei era a felicidade dele e ela apareceu como um presente, não apenas para ele, mas para mim também.

Ele acariciou a barriga dela encostando testa com testa e beijando carinhosamente.

Eles eram os meus pais e nada mais importava.

***

Nota: Desculpem o atraso, essas últimas semanas foram uma loucura, mas prometo atualizar com mais frequência. Essa linda história finaliza no capítulo 35 (estamos no 31) e já sinto a tristeza chegar :(

Esse capítulo seria longo com dois povs, mas pensei em dividí-los e deixar cada momento separado.

Daqui a diante teremos um pequeno salto no tempo e momentos de fofuras com novas crianças.

Espero que gostem e por favor deixem comentários, eu amo ler cada um deles. Me siga no Twitter: moneceles

Beijooos

Estranhos PrazeresOnde histórias criam vida. Descubra agora