1 - Estrada de Ferro para o Inferno

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Um trovão rugiu. O fogo e os relâmpagos projetavam silhuetas quase etéreas à sua volta na noite alta. Suas mãos tremem. Não está ferido, mas não consegue se mover, suas pernas não obedecem. À sua frente, uma jovem, pele morena, cabelos negros caídos sobre o rosto, usava uma roupa simples, de tecido cru, manchada de sangue.

        — A culpa é sua — ele ouvia a voz repetir ao seu ouvido, quase um sussurro em meio aos trovões. — O sangue está em suas mãos.

        Samuel não tinha voz para responder, não tinha palavras para retrucar.

        — Nada do que fizer jamais apagará isso — a voz continuou —, as águas jamais serão o suficiente para lavar todo o sangue!

        O jovem baixou os olhos para suas mãos ensanguentadas.

         Com um clarão ofuscante, um trovão rugiu.

                                                                                         Junho de 1853 - Presente

        Samuel abriu os olhos com a locomotiva sacudindo e roncando ao seu redor, ainda se sentindo naquele sonho distante. Tentando manter a postura, ele espiou pela janela da composição para encontrar o sol da manhã. Nenhuma nuvem no céu. O ar seco e gelado do início de junho invadiu seus pulmões.

         A paisagem havia se aplainado, ele reparou. Tentou identificar onde estava. Era madrugada quando trocaram de composição. Pouco mais de uma hora depois, o trem deixava para trás a região de vale e passava por Jundiahy. Agora deviam estar se aproximando de Indaiatuba. Ele conhecia a região. Não muito longe dali, não muito tempo atrás, havia um território indígena. Não do seu povo.

        Samuel era um mameluco. Os brancos se referiam ao seu povo como coroados, ou jês, definições abrangentes que incluíam tribos que nem conhecia. Na verdade, nomes não faltavam: guayanazes, votorões, entre outros. Como seu povo se referia a si mesmo não importava mais. Filho de uma indígena e um soldado branco, ele sentia cada vez mais que não havia lugar para si em nenhum dos povos. Talvez por isso tenha se sentido à vontade na organização, com tantos rostos diferentes.

        Mas o reflexo tênue no vidro não lhe permitia esquecer o que todos viam, e julgavam, ao conhecê-lo. A pele morena, os cabelos negros e lisos, presos num rabo de cavalo, olhos finos, levemente amendoados, num tom de castanho quase amarelo que lembravam os de uma onça, lhe encarando com uma austeridade misteriosa acima das maçãs do rosto salientes.

        O ronco da locomotiva não lhe deixou esquecer o som dos trovões e sua mente se voltou ao sonho mais uma vez. As palavras ecoavam insistentemente. Ninguém lhe disse aquelas palavras, ele sabia. Era tudo da sua cabeça, uma eterna autoflagelação por aquele dia há mais de uma década atrás.

        Samuel reparou também que por três vezes a sua vida havia mudado ao som de trovões. Ficou imaginando se ela mudaria de novo agora. Se a informação recebida fosse mesmo quente, a vida de todos mudaria.

        — Senhor, gostaria de uma bebida?

         A voz excessivamente polida e ensaiada o arrancou de seus devaneios e Samuel demorou um segundo para reconhecer a presença da atendente uniformizada parada ao seu lado. O corte curto emoldurava perfeitamente seu rosto, evidenciando ainda mais o sorriso congelado e o desconforto em servi-lo.

        Se não fosse pelos trajes aristocráticos que o indígena vestia, e os documentos falsos que ele apresentara, ela certamente não o faria. Samuel não a culpava, ele também não se sentia nada desconfortável naquela situação.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora