2 - Apenas uma Garota do Interior

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O canto do galo pareceu soar ao pé do seu ouvido, fazendo Pandora se levantar sobressaltada, mas sua testa foi de encontro a algo duro e ela se deitou de novo, apertando os olhos enquanto absorvia a dor.

        Quando conseguiu, enfim, abri-los, viu que o galo realmente estava ao seu lado, a encarando com olhos inquisidores e movimentos inconstantes de sua cabeça. Levou um tempo para que lembrasse onde estava: embaixo de sua carroça. Arrastou-se dali e se pôs de pé, sentindo a rigidez das costas, o galo ainda a encarando.

        Estava tendo um sonho tão agradável. Ela era criança e brincava num lindo jardim. Um enorme gato rajado estava deitado na grama, como uma esfinge. Parecia tomar conta dela. Era um sonho recorrente, embora ela nunca tenha estado num jardim como aquele, até onde podia se lembrar.

        Pandora não tinha o hábito de dormir ali, e certamente não pretendia fazer aquilo naquela noite. Ela tinha planos para a noite anterior, assim como boa parte do vilarejo. Um famoso cantor de ópera italiano, pelo menos assim fora anunciado, se apresentaria na taberna do Lázaro, o único espaço ali que poderia comportar um evento do tipo. L'Usignolo da Firenze, O Rouxinol de Florença, apresentara seu empresário.

        Acontece que, às vésperas da partida da caravana, seu refrigerador resolvera parar de funcionar. Há dois anos, a empreendedora Pandora, ficara sabendo da inovadora invenção que permitia manter os alimentos resfriados e preservados por mais tempo. Usando suas economias, ela comprara um para ser instalado em sua carroça, possibilitando que ela transportasse mais leite para vender. Mas nada era fácil em sua vida.

        Primeiro, o peso extra era demais para o seu burro, então Pandora teve que investir num segundo burro. E como se não bastasse, aquela coisa vivia dando defeito, e como ninguém no pequeno vilarejo entendia sua mecânica, ela mesma teve que aprender como fazer reparos. E orgulhava-se de ter ficado particularmente boa nisso.

        Na noite anterior, quando foi carregar a carroça, percebeu que o aparelho ligava e desligava constantemente. Foi encontrar um desencaixe entre o compressor e a serpentina, além de um vazamento quase imperceptível na mesma. Dedicou ainda algum tempo para aplicar um selante à base de resina que aprendera a fazer. Quando finalmente terminou, se permitiu ficar ali e acabou pegando no sono.

        Mas hoje não era dia de descansar. Precisava se lavar e antes de partir para encontrar a caravana, precisaria terminar de carregar a carroça. Pandora deixou o galo ali, a encarando como se ainda esperasse algo dela, e correu para casa.

        Depois de se lavar, Pandora colocou um vestido comprido que terminava na altura das canelas, ombros cobertos, com mangas compridas que se alargavam nos pulsos. O vestido tinha um tom pálido de rosa nas mangas e nas laterais e uma faixa branca do busto até a barra da saia, delineando muito bem sua silhueta. Sua mãe tinha o talento de fazer roupas simples que pareciam sofisticadas.

        Pensando nela, Pandora foi até o pequeno altar dedicado à Santa Edwiges e pegou o colar com um pingente redondo que se abria para revelar a imagem da santa, única lembrança de sua mãe além das roupas que vestia no cotidiano. Pensou em deixá-lo ali, mas voltou atrás e colocou no pescoço, pedindo a bênção da mãe.

        Devidamente arrumada, Pandora saiu e se dirigiu ao casebre do outro lado do terreno, onde encontrou a idosa de longos cabelos grisalhos e rosto afinado, como o seu, já esperando na porta. Também compartilhavam os olhos profundos, mas o peso da idade deixava os olhos da velha bem fechados.

        — Sua bênção, minha vó — Pandora pediu.

        — Deus te abençoe, minha princesa — Dona Sebastiana respondeu numa voz terna. Pandora sorriu. Sua mãe não gostava que a avó a chamasse assim. Não mime a menina, ela dizia. Mas era uma coisa das duas.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora