26 - Deixe-os Entrar

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Se tivesse que ouvir mais uma ponderação sobre as políticas de estado britânicas, mais uma análise do mercado norte-americano ou mais uma piada infame sugerindo genitálias avantajadas, ele pegaria uma coxa de peru e bateria na própria cabeça até ficar inconsciente. A noite não estava nem na metade e Ferdinando já sabia o valor das ações de cada companhia ferroviária estadunidense.

        Aquela era uma noite de festa. O motivo? Nenhum. Dom Guillermo costumava fazer aquilo com certa frequência para, palavras dele, aliviar a pressão em seus ombros. E não existe forma melhor de tirar o peso dos ombros do que enfiando muita carne, milho e vinho goela abaixo.

        Seus convidados pareciam partilhar desse pensamento. As barrigas presentes só não eram maiores do que as fortunas acumuladas. E os egos.

        Pela manhã, Ferdinando achou que não conseguiria sair da cama. Não só pela depressão quase crônica, mas também por conta de uma crise de labirintite como nunca tivera antes. Vomitou até seu estômago e seu fígado virarem do avesso e alguém — ele não sabe quem — lhe trazer algum remédio — ele não sabe qual — e ele, enfim, sentir que podia ficar de pé. Felizmente, o imperador não precisou dele ao longo do dia.

        À noite, contudo, o imperador recebia muitos convidados e Ferdinando precisava estar de prontidão. E com boa aparência. Quem o visse agora, elegante em seu traje, com os cabelos lavados e penteados, não imaginaria o dia que ele passou. Embora sua visão ainda lhe pregasse umas peças e ele precisasse se escorar em alguma coisa de tempos em tempos.

        O salão de festas estava apinhado. Muitos nobres marcavam presença, embora seus títulos de nobreza tivessem sido comprados ou barganhados em troca de influência e apoio. Não que interessasse para eles, pois o que importa são as aparências. Havia também muitos políticos, todos simpáticos ao imperador, e fazendeiros, talvez tentando beliscar um título de barão.

        Serviçais e escravos corriam de lá pra cá com bandejas ininterruptamente, ao som de um quarteto de cordas que tocava clássicos num tom monótono, quase tentando passar despercebido. Um duo de violoncelistas os antecedera, mas foi removido por guardas por tentar algo mais moderno e animado. Seu destino, ninguém sabe dizer e poucos ousariam perguntar.

        Dois deputados paranaenses se revezavam para despejar suas ideias revolucionárias e seus pedidos de verbas nos ouvidos do imperador. Dom Guillermo parecia mais entediado do que Ferdinando, mas queria passar a imagem de estadista devotado, em baixa nos últimos tempos.

        — Eu acredito, Vossa Majestade, que perdemos muito dinheiro por não taxar impostos daquelas trupes de teatro itinerantes — disse um dos deputados, um homem alto e curvado num traje branco com detalhes em dourado.

        — Muito dinheiro mesmo — complementou o outro, mais sóbrio no jeito de se vestir e com uma boca repuxada.

        — Eles vão de uma ponta à outra do país, armam suas peças de gosto duvidoso, que só servem para enfiar ideias dúbias na cabeça do nosso povo, não pagam um tostão sequer por utilizar espaços públicos e vão embora para a próxima cidade mais ricos do que quando chegaram — dissertou o primeiro. — Sem falar nas doenças que espalham.

        — Doenças tenebrosas — salientou o segundo, com o indicador erguido.

        — Isso pede, no mínimo, uma compensação!

        — Concordo plenamente com os senhores — Dom Guillermo disse, num tom que tentava, ao mesmo tempo, parecer engajado e findar a conversa. — Tendes a minha palavra de que avaliarei com tento especial a proposta.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora