A viagem até Passo Rubro levou três dias, contando o percurso e o tempo que levaram para conseguir um vapor para cruzar o amplo corpo d'água que era o Rio Piracicaba naquele trecho. Os anjos de ferro suspeitavam que o trajeto poderia ter sido mais rápido se tivessem dado a volta, mas agora era tarde para lamentar. Só esperavam que não fosse tarde demais.
Chegaram ao vilarejo num dia frio e nublado, com uma fina garoa intermitente, o que dava ao lugar um ar ainda mais melancólico. Para onde quer que se olhasse, tudo tinha uma palheta de cores em cinza e no tom mais lúgubre de azul. Até as pessoas apresentavam essas cores, nas roupas e nos rostos ossudos.
— Este é o lugar mais deprimente que eu já vi — Rafaela comentou.
— É a fábrica — Samuel explicou. — Exposição prolongada a compostos químicos somada a jornadas de trabalho desumanas fariam isso com a mais alegre das cidades.
Foi uma das primeiras coisas que aprenderam ao chegar. A fábrica que a pequena ladra mencionara era um enorme complexo que produzia corantes, visível por qualquer canto do povoado. Tudo girava em torno da fábrica, e quem não trabalhava nela, geria o comércio da vila, atendendo aos operários.
Para onde ia toda a riqueza gerada, ninguém sabia dizer. Diferente dos muitos vilarejos pelos quais passaram, com ruas de paralelepípedos, o chão ali era predominantemente de terra, uma lama vermelha e impregnante que, provavelmente, deu nome ao lugar.
A garoa, contudo, não afastou as pessoas da rua. Não que isso conferisse vida ao lugar, afinal, ninguém conversava. Os dois foram caminhando acompanhados pela melodia de botas afundando na lama e pessoas tossindo ritmicamente. A sombrinha de Rafaela era quase solitária ali.
— Será que elas esperam pegar uma pneumonia para acabar com o tormento delas? — A garota comentou, revoltada.
— Enquanto puderem se manter de pé, as pessoas andam — Samuel tentou explicar. — Se pararem, elas morrem, muito embora o simples fato de andar esteja matando elas. É o paradoxo das classes mais baixas.
Rafaela fungou. Samuel relevou. Apesar de todo o senso de justiça e a vontade de endireitar tudo à força, ele sabia que a parceira ainda era uma garota rica que fora criada sem se preocupar com uma corda no pescoço. As questões práticas do mundo real faziam pouco sentido para ela. Embora ele suspeitasse que o mundo precisasse de um pouco de seu pragmatismo para corrigir uma coisinha ou outra.
— Tem certeza de que a ladrazinha não te enrolou? — Ela perguntou.
— Certeza é uma coisa da qual não podemos nos dar ao luxo — ele disse. — Por isso investigamos. Mas tenho um palpite de que ela falou a verdade.
— E palpites são permitidos?
— Palpites são as nossas melhores ferramentas.
A garota fungou de novo.
— E quanto à tal Catarina, ou o colar? Algum palpite?
Samuel ponderou por um momento. Tinha mil teorias na cabeça, mas nada sólido o bastante para se sustentar sozinho.
— Talvez ela tenha trabalhado para os pais de Dom Guillermo — ele arriscou. — Ou para Dom Pedro. Talvez saiba de algum segredo, talvez o colar prove alguma coisa. Talvez o bastardo não seja nem isso. Claro que isso tudo é só excesso de otimismo.
— São muitos talvez para o meu gosto — Rafaela reclamou.
— Acostume-se. O nosso trabalho geralmente se trata de suprimir conspirações e, para isso, nós suspeitamos, conjecturamos, investigamos e, só então, atacamos. Nós não somos um canhão que é disparado contra um alvo pela vontade de outra pessoa.
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Engel - O Prelúdio dos Anjos de Ferro
AventuraO Imperador está morto. A notícia pegou o país de surpresa, acabando com as esperanças de muitos. Cerca de um ano antes, Dom Pedro II renunciava ao trono em favor do seu então desconhecido irmão, Dom Guillermo, e partia para o exílio na Áustria. A e...