27 - Eu Te Assombrarei de Novo

10 3 3
                                    

O sol já começava a colorir o céu quando Samuel se viu obrigado a desistir. Ao longo de toda a noite, ele vasculhou a região, descendo até a base da queda d'água, percorrendo uma boa extensão do rio, chegou até a mergulhar nas águas geladas, mas não havia qualquer sinal de Rafaela ou de Belzebu.

        A parceira muito provavelmente estava morta, o demônio também, seus corpos foram levados pela correnteza.

        O feito de Rafaela fora gigantesco. Ainda que ao custo de sua vida, ela derrotou o mais temido dos generais de Lúcifer. Sua proeza seria lembrada por gerações, ela receberia homenagens póstumas. Samuel só conseguia se lembrar do momento em que os dois despencaram.

        Tinha que ter sido eu!

        Esse pensamento persistente não era porque ele desejava a glória que seria destinada à parceira, mas porque cada fibra do seu ser gritava que aquilo não estava certo. Uma jovem promissora não deveria se sacrificar no lugar de um guerreiro experiente que nunca havia feito nada de bom.

        Sentindo o frio penetrar pelas suas roupas e abraçar impiedosamente sua pele, o anjo refez seu caminho, mancando pela floresta até o local onde deixara Pandora à própria sorte, dentro de um buraco. O sacrifício de Rafaela não poderia ter sido em vão, ele precisava, agora mais do que nunca, concluir a missão.

        Sob uma luz diferente, a floresta parecia outro lugar, tanto que temeu ter errado o caminho. O abatimento pela perda foi logo sendo sobreposto pela ansiedade. Quando não viu sinal de seu trabalho precário da noite anterior, decidiu chamar:

        — Pandora!

        Um longo silêncio, quebrado somente pelos pássaros madrugadores. Do alto de um galho, um cuitelão o encarava. Seu corpo diminuto e atarracado, o bico comprido e a penugem na cabeça que lhe conferia uma expressão rabugenta o fizeram lembrar de Rafaela, repreendendo-o do além por mais uma falha sua. A ansiedade aumentou. Inflou os pulmões para chamar de novo quando veio a resposta:

        — Samuel?

        O anjo correu na direção da voz. Não muito longe dali, avistou a armadilha, intocada, como ele havia deixado. Parou na beirada e começou a remover os galhos. Lá embaixo, os olhos de Pandora captaram os seus. A leiteira estava sentada, com os braços ao redor dos joelhos, mas logo se levantou, escorando-se na parede, a perna dobrada para não apoiar o pé machucado no chão. Samuel sentiu um alívio imediato.

        — Você voltou! — Ela comentou, um sorriso no rosto.

        Samuel suspirou.

        — Você está bem? — Ele perguntou.

        — Acho que sim. Meu pé não está doendo tanto agora.

        — Tudo bem, aguente mais um pouco, eu vou encontrar alguma coisa para puxar você.

        — Espere! — Pandora se apressou em detê-lo. — E a Rafaela? Ela não está com você?

        A expressão no rosto de Samuel ficou sombria de novo e ele não conseguiu encontrar os olhos dela ou exprimir qualquer palavra que fosse.

        — Samuel? — Pandora insistiu. — Ela está bem, não está?

        — Eu vou tirar você daí — ele desviou. — Espere mais um pouco.

        Quando se virou, uma dúzia de sombras surgiu das árvores, homens descalços, em sua maioria. Usavam calças curtas, camisas de tecido cru, além de capas e chapéus esfarrapados. Todos pesadamente armados com peixeiras e carabinas, algumas apontadas para o indígena.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora