36 - Abra Suas Asas e Voe

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O jardim parecia mais vívido do que nunca, Pandora reparou. Ela estava tendo aquele sonho de novo. Ela era uma criança de quatro, talvez cinco anos, e brincava num jardim amplo, protegido por cercas-vivas. Um balanço ali perto ia e vinha suavemente sempre que o vento soprava. Sobre sua cabeça, uma orquestra de pássaros.

        Pandora, que usava um lindo vestido verde de mangas bufantes, sentou-se na grama e acompanhou uma joaninha que subia pelo talo de uma folha. Ela levou o dedo até a base da folha e a joaninha subiu em sua unha. Radiante, ela sorriu para o enorme gato rajado que estava deitado a poucos metros dali, como se a vigiasse.

        Procurando alguém para mostrar aquilo, Pandora olhou em volta, mas não tinha ninguém. Olhou para a enorme mansão e captou um rosto na janela. Uma mulher de meia-idade a observava com uma expressão nada gentil. Seu penteado elaborado sempre fazia Pandora lembrar de uma colmeia.

        Seus olhos se voltaram para o gato. Mas não era mais um gato. Era Samuel, a vigiando, deitado na grama como um gato. Ele até tinha bigodes de gato. Confusa a princípio, ela acabou por ignorar e voltou sua atenção para a joaninha. O inseto levantou voou e pousou na ponta de seu nariz. Aquilo provocou cócegas e ela balançou a cabeça, fazendo o inseto voar para longe. Pandora riu e olhou para o gato Samuel, mas tinha algo de errado.

        Samuel rosnava, olhando na direção dela. Ele ficou de quatro e empinou a coluna enquanto produzia aquele som ameaçador. Assustada, Pandora se levantou e olhou para trás. Descobriu que a mulher agora estava bem atrás dela, seus olhos indicando intenções nada agradáveis. Pandora recuou quando a mulher estendeu a mão para agarrá-la. Nem viu quando Samuel saltou por cima de seus ombros e se atracou com garras e dentes com a mulher.

                                                                      *

        Pandora acordou gritando. Levou um segundo para se situar. Estava naquela toca, sentada ao lado de Samuel. Seu coração foi desacelerando aos poucos conforme a realidade se estabelecia.

        Mas então olhou para baixo e viu que Samuel não estava ali, como julgara a princípio. Olhou em volta e descobriu que estava completamente sozinha. Seu coração deu um salto. Tentou se colocar de pé, mas suas pernas estavam atrofiadas pela posição em que dormira. Levou um tempo até que recuperasse o controle sobre elas.

        Quando conseguiu deixar a cabana, foi brindada com o sol da manhã e um céu límpido. A mãe da Samuel estava ali, com uma pedra de amolar, afiando as lâminas do anjo. As pistolas estavam bem ao lado dela, esperando sua vez de receber manutenção.

        — Bom dia — Pandora disse. — O Samuel, onde ele está?

        A idosa levantou lentamente a cabeça para encontrar seu olhar, gesticulou na direção da mata e retomou seu trabalho. Pandora tentou conter a ansiedade, mas acelerou os passos para se embrenhar na mata.

        Aquele era o caminho que ela percorrera para buscar água, mas era a primeira vez que fazia isso à luz do dia. Não era tão denso quanto havia julgado. Na verdade, a vegetação de inverno, mais seca e espaçada, facilitava bastante a locomoção.

        O som do rio foi ficando mais claro. Será que Samuel foi até lá? Ele pode estar com sede. Eu também estou, na verdade. E seria bom lavar o rosto também. Seus pensamentos, em grande parte, serviam para calar sua angústia, sua preocupação. O anjo estava à beira da morte na noite anterior e agora tinha ido dar um passeio no rio?

        Seus devaneios pararam quando alcançou o rio e viu as roupas de Samuel dobradas à beira da água. Dentro das águas mansas, o anjo se banhava, num estado quase meditativo. Ao reparar em Pandora, ele se virou e ameaçou levantar. A leiteira deu um grito curto e cobriu o rosto com as mãos. Samuel se abaixou de novo.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora