16 - Os Filhos da Revolução

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        — Sabe, uma vez eu organizei uma expedição para encontrar a gatinha da minha amiga Dalila — Pandora contava. — A gente encontrou, mas ela não quis voltar. Ela estava no cio, sabe? Uns dois dias depois, ela voltou de barriga.

        — Hum — Rafaela disse, desinteressada.

        — Acho que essa capacidade de liderar as outras crianças na expedição já estava no meu sangue, sabe? — Pandora continuou, o olhar perdido no céu sem nuvens. — Talvez isso me ajude a governar.

        Rafaela nem conseguiu responder desta vez. Estava farta, para não dizer impressionada com a capacidade de uma pessoa para falar ininterruptamente sobre os temas mais desimportantes. E as perguntas. Pandora tinha muitas, das mais pitorescas às mais absurdas.

        Todos os anjos precisam ser católicos? Matar uma pessoa não é pecado? Mesmo que seja um demônio? O que acontece quando acabam os nomes de anjos? Vocês repetem? Onde eu moro, tem um senhor que se chama Emanuel, ele é um anjo também?

        A princípio, Rafaela tentou responder às perguntas, mas logo se cansou da brincadeira. O sol, mais quente do que nos últimos dias, torrando sua cabeça não estava contribuindo para melhorar o seu humor.

        Samuel havia tomado a dianteira para agir como batedor. O trecho montanhoso ia ficando para trás para dar lugar a uma planície, onde ficariam bem expostos. O indígena era melhor para identificar sinais humanos, mas Rafaela desconfiava que ele a tinha deixado sozinha com a pretendente a imperatriz de propósito.

        — Sabe, eu passei a vida toda achando que meu pai era soldado — Pandora seguiu falando. — O que era legal, saber que ele tinha lutado junto com o imperador. Aí, eu descubro que ele era o imperador, o que também é legal. Mas aí, eu penso que ele também teve um monte de outros filhos e talvez nem soubesse que eu existia. Será que não era melhor continuar sendo filha de soldado?

        Rafaela apenas balançou a cabeça. Pandora prosseguiu.

        — E eu nem me pareço com meus irmãos, digo, o Dom Guillermo e o Dom Pedro — ela comentou, então levou a mão ao rosto. — Bem, talvez o nariz. É estranho chamar eles de irmãos. Você tem irmãos?

        — Tenho...

        — Quantos?

        — Sei lá...

        Pandora ficou em silêncio por um segundo, processando aquela resposta. Teria seguido com seu falatório se a silhueta de Samuel não tivesse surgindo subindo o morro. Pelo modo como Rafaela correu na direção dele, podia jurar que ela o abraçaria, mas em vez disso, a garota passou direto e tomou a dianteira. Samuel veio em sua direção.

        — Vejo que estão se dando bem — ele comentou.

        — Ela não é muito de conversa, não é mesmo?

        — Não leve para o pessoal. — Então acrescentou: — O caminho está livre até a cidade. Não devemos encontrar problemas.

        Pandora se adiantou até o limite do morro para avistar Hermes na planície abaixo. Depois que aeródromos foram construídos nas principais capitais, havia o plano de implantar outros menores em pontos estratégicos pelo interior. O aeródromo de Hermes foi o primeiro. E o último. Muitas obras foram suspensas com a chegada do novo regime.

        O vilarejo nada mais era do que um conjunto de habitações no meio de um extenso espaço aberto, o que o credenciava como o lugar ideal para o empreendimento. O lugar foi rebatizado com o nome do deus grego dos viajantes. Alguém achou apropriado. Desde então, ele cresceu exponencialmente, principalmente na vertical, tornando-se quase uma atração turística, ainda mais considerando que as viagens aéreas haviam se tornado um privilégio dos mais ricos.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora