Dizem que só damos valor a uma coisa quando a perdemos. Rafaela se lembra de como odiava ficar gripada quando era criança. Quando a gripe passava, poucas coisas a satisfaziam mais do que constatar que era capaz de respirar de novo, de sentir cheiros. Rafaela não esteve gripada, mas a brisa daquela manhã lhe trouxe tantos cheiros que ela achou que poderia se embriagar neles.
O orvalho. A grama. A terra molhada depois da chuva que caíra de madrugada. Mexericas. Esterco. Até o cheiro de esterco foi bem-vindo.
Passaram-se cerca de duas semanas desde que ela chegara ali, se é que se pode confiar na palavra de Paulo, e aquela era a primeira vez em que Rafaela se sentia verdadeiramente viva desde então. Não era a primeira vez que saía da cabana, mas das outras vezes o mundo parecia tão ameaçador. Num dos dias, o clima estava frio e borrascoso, de modo que ela aceitou de bom grado a desculpa para se enfiar embaixo das cobertas para lamber suas feridas.
Aquele período de resguardo também era uma desculpa para esperar. Talvez Samuel estivesse procurando por ela. Se ela ficasse no mesmo lugar, as chances de ser encontrada seriam maiores. Contudo, o tempo passou e nada de Samuel, ou de quem quer que fosse. Chegou a sentir um pouco de raiva. Será que ela era tão dispensável assim? Mas era preciso entender as circunstâncias, e essas circunstância levariam qualquer um a crer que Rafaela morreu.
Mas agora ela estava viva. Ela havia morrido e agora ressuscitava. E ela precisava sentir essa nova vida. Arriscando seus primeiros passos longe daquele ninho, Rafaela constatou que o único vizinho próximo de Paulo era um tatu que vivia a alguns metros dali, numa toca que compartilhava do mesmo barranco ao qual a casa do homem se escorava.
Ao redor, apenas árvores. Bananeiras de um lado, jabuticabeiras do outro, quaresmeiras mais adiante. Aos pés destas, um pequeno córrego corria. No sentido oposto, era possível ver traços de uma trilha no chão. Ao lado dela, em intervalos de cinquenta metros, placas de madeira levavam desenhos toscos que descreviam Paulo andando, pé direito na frente na primeira placa, pé esquerdo na frente na placa seguinte. Provavelmente aquele era o caminho que o homem percorria até a civilização.
Rafaela teve vontade de correr. Não para fugir dali, mas simplesmente porque podia. A anemia não mais cobrava o preço em seu corpo. Ela chegou a dar um passo mais comprido, mas seu movimento foi restrito pelo camisolão que usava. Ela olhou para aquela roupa, para os babados em seus pulsos e bufou. A passos apressados, a jovem refez seu caminho.
De volta à cabana, Rafaela esquadrinhou o lugar inteiro até encontrar o que procurava: um cesto com suas roupas. Para sua surpresa, estavam lavadas e costuradas. Não se lembra de ter visto Paulo fazer nada disso, mas também não se lembra de tê-lo visto fazer qualquer outra coisa. Olhou para a porta para ter certeza de que estava sozinha e arrancou o camisolão de uma vez pela cabeça.
Num timing impecável, Paulo entrou pela porta enquanto Rafaela amarrava suas botas. O eremita trazia um cesto com pão, uma garrafa de leite e diversos legumes e verduras. Seu rosto exibiu uma alegria teatral ao ver o anjo.
— O passarinho está pronto para voar! — Ele disse, então sua expressão ganhou um jeito melancólico, igualmente teatral. — E agora ele vai me deixar.
— Você disse que Ascensão fica aqui perto — Rafaela o lembrou.
— Sim — o homem respondeu, a postura mais séria. — Siga a trilha até a estrada, então vá para o Norte.
— Eu agradeço por tudo o que fez por mim — ela disse. — Assim que possível, encontrarei um jeito de pagar por tudo.
— Impossível — o homem disse, depositando o cesto na mesa. — Eu não sou médico, logo, você não pode me pagar pelos meus serviços como médico. E se eu tiver colocado a sua perna no lugar errado?
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Engel - O Prelúdio dos Anjos de Ferro
AdventureO Imperador está morto. A notícia pegou o país de surpresa, acabando com as esperanças de muitos. Cerca de um ano antes, Dom Pedro II renunciava ao trono em favor do seu então desconhecido irmão, Dom Guillermo, e partia para o exílio na Áustria. A e...