15 - Eu Ainda Me Lembro

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Ferdinando abriu os olhos, mas não quis se levantar. Tem sido assim todas as manhãs há alguns meses. Ele estava muito bem de saúde, obrigado, pelo menos fisicamente. Por dentro, Ferdinando sentia que estava morrendo lentamente.

        Quando reuniu coragem o suficiente, arrastou-se de sua enorme cama e foi aliviar a bexiga. Voltou sem a menor vontade de trocar seu camisolão pelo seu traje oficial, mas o fez assim mesmo. Botou as calças brancas como se fossem correntes em seus pés. Vestiu o paletó azul-marinho, similar ao da guarda imperial, como se fosse uma camisa de força, fechando cada botão como se fossem cadeados.

        Devidamente vestido, foi até uma tina para lavar o rosto e encarou aquele ser estranho que o encarava de volta. Seus cachos negros estavam mais rebeldes do que nunca. O rosto, que já era fino, parecia derreter. Os olhos estavam fundos, a boca murcha e caída, contornada por um cavanhaque ralo. Ferdinando nunca se achou particularmente bonito, mas um dia fora confiante.

        Sua confiança advinha principalmente de sua mente afiada. Ferdinando falava três idiomas, tinha um talento natural para números, um ouvido absoluto e uma memória invejável. Verbos conjugados no passado porque tudo isso ficou para trás, quase como se fossem talentos de um outro Ferdinando, um que não existe mais.

        A memória, contudo, permanece, e é ela que ajuda a matá-lo todos os dias, lembrando-lhe de tudo o que deixou para trás. Sua memória havia lhe arranjado um quarto na maior e mais opulenta prisão do país, e ele se lembrava perfeitamente do dia em que aconteceu e das palavras que proferira para selar sua sina:

        Dom Guillermo de Alcântara João Francisco Carlos Pio Lourenço Caetano de Paula Jerônimo Joaquim Cipriano Gregório Pascoal Domingo Ferrer Nepomuceno Xavier Quintino Leopoldo Damasceno Maria Vicentino Miguel Rafael Gabriel Uriel Borges de Bragança e Villalba. E depois, de trás para a frente.

        Essas palavras foram pronunciadas de maneira burlesca, em cima da mesa de um botequim da capital, com bêbados incentivando à sua volta e um sujeito com uma cola se certificando de que não havia cometido nenhum erro. Ferdinando levou um bom dinheiro para casa naquela noite daqueles que apostaram contra ele.

        No dia seguinte, quando os guardas vieram escoltá-lo, ele teve a certeza de que seria enforcado por ridicularizar o imperador ou mesmo por apologia, já que também teria feito a mesma coisa com os nomes de Pedro pai e Pedro filho. Em vez disso, ele ganhou um emprego: anunciador real.

        Acontece que Dom Guillermo bateu o pé para ter um nome maior do que o de seus antecessores, um sinal de poder, mas era incapaz de decorá-lo. Na verdade, ele raramente conseguia pronunciar os cinco primeiros na ordem correta. E é aí que Ferdinando entra.

        Suas funções primárias incluem anunciar o imperador sempre que necessário, pronunciando seu nome completo e qualquer outra designação, dependendo da ocasião, e ficar por perto em eventos especiais para fazer o mesmo e para lembrá-lo de algum detalhe sobre os convidados. Ele até ganhou um clarim para exercer de forma ainda mais pomposa a sua função.

        Resumindo: ele recebeu um quarto no palácio, ganhava um ordenado invejável e só tinha que trabalhar menos de uma hora por dia, quando tinha, realizando uma tarefa estúpida que mal exigia dele. Como foi que isso se transformou num inferno?

        O fato é que Ferdinando tinha que estar sempre de prontidão. Ele tinha uma folga por semana, que podia ser suspensa caso Dom Guillermo precisasse dele, e o imperador tinha o hábito de precisar dele em sua folga, então mal saía da Quinta. Com exceção de registros e documentos, todos os livros haviam sido queimados, então ele não tinha nenhum material de leitura estimulante, e não vamos nem falar do sermão que ele ouviu quando fora pego tentando aprender uma música nova no clarim.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora