30 - Parque de Ferrugem

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Sol, lá, si bemol, lá, sol, ré, sol, as notas ressoaram. Sol, lá, si bemol, lá, sol, fá.

        Aquela introdução se repetia com tanta frequência que Rafaela já tinha dificuldades de distinguir se estava acordada ou não. Às vezes, questionava se estaria mesmo viva. Vai ver, ela estava no purgatório. Ela nunca entendeu muito bem o conceito de purgatório. Talvez sua situação atual fosse a explicação que ninguém jamais foi capaz de lhe dar.

        Deitada em sua cama, ela não conseguia identificar uma única parte do corpo que não doía. Talvez isso fosse prova o suficiente de que estava viva... e acordada. Seu corpo tinha mais ataduras do que ela achava necessário, mas também não tinha forças para se mover o suficiente para verificar, então só lhe restava confiar em seu salvador, Paulo.

        Esse era o único nome que o homem lhe dera. Sem sobrenome, sem ocupação, sem história e, muito provavelmente, sem sanidade. Ele era uma figura peculiar em todos os sentidos. Provavelmente na casa dos cinquenta, ele tinha cabelos bem aparados e barba cheia, ambos bem branqueados. Os olhos eram azuis e expressivos e a pele carecia de coloração. Estava sempre usando um paletó roxo com grandes botões dourados. Tinha um sotaque curioso, difícil de determinar.

        Quando não estava contando histórias das mais fantásticas ao som do enorme piano que ele tinha dentro da pequena cabana de madeira, Paulo andava de um lado para o outro comentando sobre as coisas mais mundanas por meio de uma filosofia difícil de acompanhar, especialmente porque nem sempre parecia ser a mesma pessoa que falava. Paulo abrigava, em sua cabeça, uma quantidade anormal de personas, que às vezes conversavam entre si.

        Louco ou não, se é que se pode confiar nas palavras do homem, foi Paulo quem encontrou Rafaela desacordada, sendo carregada pelo rio como um cadáver. Ele a puxou para a terra, a trouxe para sua cabana e tratou de suas feridas.

        Ainda segundo ele, Rafaela ficou inconsciente por dois dias. No terceiro, foi só delírios de febre. No quarto, já capaz de abrir os olhos e trocar algumas palavras, temeu estar com amnésia, pois não conseguia se lembrar nem do próprio nome, chegando a considerar mais de um em sua cabeça, mas tudo não passou de uma confusão mental. Logo, as memórias a invadiram de novo.

        A luta com Belzebu, sua ideia de se sacrificar para levá-lo consigo, a queda da cachoeira, o impacto com a água... a escuridão.

        Veio um temor.

        Se ela sobreviveu, o demônio também poderia estar vivo. Segundo Paulo, não. "O outro patinho", como ele se referiu a Belzebu, quebrou o pescoço e nunca mais poderia nadar. Provavelmente, o demônio sustentou a maior parte do impacto. Rafaela chegou a acordar no meio da noite após um pesadelo em que Belzebu retirava a máscara e revelava ser Paulo.

        O medo não desapareceu por completo, pois ela lembrava que nunca chegou a ver o rosto do demônio e que, apesar da idade avançada, seu anfitrião apresentava certa desenvoltura. Mas se estivesse vivo, ele também precisaria de algum cuidado médico, então tratou de afastar essa ideia da cabeça.

        Ainda segundo Paulo, Rafaela bateu a cabeça, fraturou algumas costelas, sofreu queimaduras leves no braço direito, engoliu muita água, perdeu muito sangue e alguns centímetros de altura. Essa última parte pode ter sido um jeito de Paulo caçoar de sua baixa estatura. Sem mencionar os ferimentos sofridos durante a luta, como o corte no braço que afetou seus tendões e a perfuração no peito cujos pontos se abriram.

        Encarando o teto, ela revivia os eventos daquela noite. Devia estar se sentindo orgulhosa de si mesma, afinal, ela derrotou um dos demônios mais temidos, um adversário que muitos julgavam imbatível. Mas não era assim que se sentia. Em primeiro lugar, parecia errado ter sobrevivido depois daquele grand finale. Como ela daria as caras depois daquilo?

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora