Sentado no balcão d'O Salvo-conduto, o mais célebre boteco de Piracicaba, segundo ele mesmo, possivelmente para conseguir um desconto, Calisto Fontana batucava meio lápis na superfície de madeira, cigarro nos lábios, encarando o papel como se pudesse forçá-lo a entregar a palavra que ele queria.
— Meu caro Simão, uma ajuda, sim? — Ele pediu ao homem do outro lado do balcão. — Preciso de uma palavra que rime com teatro.
— Problemas — Simão respondeu, com uma voz gutural. Apesar da idade, o homem tinha uma constituição forte. Já havia perdido boa parte dos cabelos, mas uma densa barba parecia tentar compensar.
— Problemas não rima com teatro, Simão — o jornalista contestou.
— Não. Você vai arrumar problemas — o velho devolveu, a voz era grave, mas cheia de consideração.
— Você é pessimista demais, meu velho.
— Eu sou cauteloso — Simão corrigiu. — Isso me manteve vivo até hoje.
— A Almerinda o manteve vivo até hoje — Calisto o corrigiu de volta, dando uma piscadela para a mulher sentada na outra ponta do balcão, comendo uma maçã. A mulher lhe soprou um beijo. — Ah, dane-se a métrica.
Calisto rabiscou rapidamente algumas palavras no papel e esboçou um leve sorriso satisfeito para o resultado. Então, se colocou de pé, apoiou o cigarro na beira do balcão e pôs um pé na banqueta em que se sentara para começar a declamar:
— Sombra adventícia, do próprio sangue derramou — começou, com gestos burlescos. — Atiçaste tua milícia sobre gente que nunca amou.
— O que é adventícia — Almerinda perguntou. Calisto pediu silêncio com um "xiu".
— Ímpio és dos valores que pregas em teu teatro — dois guardas passaram pela porta, nesse instante. Calisto fingiu não reparar neles, mas até reajustou sua posição para que sua voz os alcançasse. — Mas tu provarás dissabores, e ainda ver-te-ei de quatro.
Os guardas seguiram caminho sem olhar duas vezes, deixando Calisto um tanto decepcionado. Almerinda bateu palmas em seu canto. Seu marido pode ter franzido os lábios por baixo daquela barba.
— O que acharam? — Calisto perguntou.
— Acho que você vai se matar — Simão decretou, soturno.
— Para isso, deveria haver uma ameaça — o jornalista devolveu com falsa indignação. — Eles precisariam entender minhas palavras, e se fossem inteligentes para tanto, não abanariam o rabinho para Dom Guillermo.
— Eu gostei —disse Leonardo, com um sorriso arguto, bebendo uma cerveja numa das mesas do canto. Era um homem negro, formado engenheiro, de olhos finos e sorriso largo.
— Obrigado, Leo — o jornalista disse, em tom teatral. — É bom ver que alguém aqui tem bom gosto.
— Você é ainda mais louco, Leo — o dono do bar advertiu. — O alvo nas suas costas é ainda maior.
Simão não estava errado. Nos últimos anos, dificilmente se via um negro nas ruas que não fosse um escravo realizando alguma tarefa para seu senhor. Era comum que os guardas os abordassem sem qualquer justificativa. Documentos e cartas de alforria desapareciam e ninguém se dava ao trabalho de verificar os registros. Sem falar nas execuções sumárias. Poucos lugares eram seguros. O Salvo-conduto não tinha esse nome à toa.
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Engel - O Prelúdio dos Anjos de Ferro
AdventureO Imperador está morto. A notícia pegou o país de surpresa, acabando com as esperanças de muitos. Cerca de um ano antes, Dom Pedro II renunciava ao trono em favor do seu então desconhecido irmão, Dom Guillermo, e partia para o exílio na Áustria. A e...