9 - Não Fale com Incendiários

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Por mais que tentasse, ele não sabia explicar o motivo. O fato é que ele tinha um fascínio pelo fogo. Fique longe do fogo, lhe disseram uma vez, é perigoso. Talvez tenha sido seu pai, sua mãe, quem sabe? Tudo em vão, pois o fogo lhe chamava. Cantava para ele.

        Mesmo agora, homem feito, sentado naquela banqueta, naquela cabana velha que pertencia a um casal idoso que lhe acolhera, ele atiçava a chama naquele forno de pedra e podia jurar que ouvia o fogo lhe chamar: Belfegor. Belfegor. Venha dançar comigo, dizia. Não posso. Ainda tenho trabalho a fazer.

        Aquela era uma chama simples, produzida pela queima de carvão vegetal. Tinha sua beleza, mas Belfegor gostava da inconstância do fogo, do modo como ele existia e deixava de existir, do modo como assumia diferentes formas e tamanhos e, até mesmo, diferentes cores.

        O lítio podia produzir uma chama vermelha, ao passo que o boro e o cobre queimavam com um brilho verde. O metanol produzia uma chama invisível. Mortal, mas Belfegor repudiava a ideia. Por que privar os olhos mortais da beleza de uma chama? Gostava particularmente da chama produzida pelo potássio, púrpura.

        Seu grande fascínio, contudo, era por uma ideia quase mitológica: a chama negra. Um fogo tão escuro e quente que consumia como a própria escuridão, que queimava a alma. Um dia, ele a produziria e, quando sua missão na Terra estivesse concluída, se uniria a ela.

        Pensou ter sentido seu peito latejar, mas sabia que era só da sua cabeça. Sentia aquilo desde que fora marcado, numa das ocasiões em que o fogo lhe beijara mais intimamente. Seus companheiros ganhavam uma tatuagem, mas ele pediu que fosse marcado a ferro.

        Levou a mão ao peito nu e traçou o dedo pelos contornos. Um triângulo de ponta-cabeça, cuja ponta de baixo continuava em duas linhas que terminavam em ganchos, um X sobrepondo o triângulo e um V abaixo dele. O símbolo de Lúcifer.

        A dor em seu flanco esquerdo, contudo, era real. O projétil por pouco não acertou seu rim e os pontos dados eram tão precários que deixaram sua pele torta, mas acreditava que segurariam. Era o preço a pagar por subestimar o seu adversário. Guerreiros velhos não chegam tão longe à toa.

        Belfegor sabia que seu inimigo, se ainda estivesse vivo, estaria num estado pior do que o dele, e considerando que Belfegor precisou de cinco dias só para sair da cama, isso queria dizer muita coisa. Mas o tempo estava passando, a história já devia ter se espalhado e reforços provavelmente já estavam a caminho, então ele precisava agir rápido.

        Levantou-se e foi até um espelho. Tinha um rosto jovem, um queixo pontudo, a testa era comprida, protuberante na região do supercílio. A cabeça era raspada nas laterais e um cabelo alaranjado crescia sem direção na parte de cima. Tinha olhos gentis e um sorriso sincero e, de fato, ninguém podia duvidar de sua sinceridade. Talvez do seu senso de moral.

        Apesar da pressa, limpou o sangue da adaga e a usou para aparar a barba que crescera durante o período de cama. Aquilo não era desculpa para se apresentar como um mendigo. Vestiu, então, uma camisa branca e uma jaqueta fechada por cima, calçou os coturnos e colocou as luvas de couro sem dedos. Enfim, se sentia como ele mesmo de novo.

        Pegou o óleo de lamparina e espalhou meticulosamente pelo barraco, parando somente para se despedir do casal que repousava tranquilamente na cama, as gargantas abertas, os lençóis manchados de vermelho. Sussurrou um agradecimento e despejou a maior parte do óleo sobre seus corpos. Eram boas pessoas, mereciam a glória das chamas.

        Foi até o quintal e voltou com um pedaço de madeira com um tecido enrolado na ponta. Embebeu o tecido com o que restou do óleo e foi até o fogo para acendê-lo. Permitiu-se admirar a chama em suas mãos antes de passá-la por alguns dos móveis. Ao sair pela porta, lançou a tocha dentro do barraco e não olhou para trás, pois sabia que se o fizesse, perderia um bom tempo assistindo ao espetáculo. Só se permitiu admirar o canto das chamas em seus ouvidos, ficando cada vez mais distante conforme se afastava.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora