13 - Silêncio, Agora

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                                              Horas antes do embate entre Samuel e Belfegor

Cecília tinha o silêncio como seu companheiro. É assim há mais tempo do que ela consegue se lembrar. O silêncio a trouxe tão longe. Foi o silêncio que a manteve viva em seu esconderijo enquanto sua família era massacrada quando criança, foi o silêncio que a impediu de reagir quando seu grupo fora atacado e os sobreviventes escravizados.

        Foi graças ao silêncio, e à sua esperteza, que ela hoje serve como escrava doméstica no Palácio da Quinta.

        Seu próprio nome era um suspiro. Cecília. Significa aquela que não vê. Mas também carrega o sentido de sábia. Apesar de que, a bem da verdade, este não era seu nome verdadeiro, mas um que ela recebera para se proteger, para se mascarar num mundo que não a queria. Seu nome verdadeiro, como fora ensinada, ela guardava só para si, para jamais esquecer quem ela era.

        Seu próprio rosto parecia uma máscara. O cabelo era raspado, como o de muitos escravos nos últimos dois anos, pois muitos consideravam o cabelo afro uma ofensa. O rosto oval terminava num queixo fino, quase pontiagudo. Seus olhos e sua boca eram finos e compridos. O nariz era convexo, o que, visto de perfil, acentuava o arco que seu rosto formava.

        Com seus passos, não era diferente. Descalça, uma pluma produziria mais ruídos, e mesmo quando recebeu permissão para usar calçados, seu corpo jovem e magro aprendeu a se deslocar com uma elegância que nenhuma dama conseguia reproduzir. Alguns brincavam que até mesmo as figuras nos quadros se assustavam quando ela se aproximava. Cecília ignorava as brincadeiras. Era assim que sobrevivia.

        Flutuando pelos opulentos corredores do Palácio de São Cristóvão, com uma bandeja na mão, a jovem reparava como cada parede parecia trazer entalhes, gravuras, pinturas, detalhes em ouro. Imaginava que era isso que uma pessoa fazia quando tinha mais dinheiro do que conseguia gastar. Alguns dos quartos tinham pinturas até no teto.

        Se você passa o dia de barriga para cima, deve querer alguma coisa interessante para olhar, não só um teto branco.

        Isso, é claro, ela nunca expressou em voz alta. Era assim que se mantinha viva. Ninguém, especialmente ali, estava interessado em opiniões, apenas em afirmações. Dela, queriam apenas um aceno de cabeça. Até um sorriso poderia ser mal interpretado.

        Ao chegar nos aposentos de Dom Guillermo, Cecília bateu duas vezes, esperou e entrou. Lá dentro, encontrou o imperador nu, arrastando-se para fora da cama. Ele a olhou de canto de olho e fez um gesto débil com a mão para indicar que deixasse a bandeja sobre a mesa. Cecília obedeceu e esperou perto da porta, como de praxe.

        O quarto do imperador podia comportar uma família de cinco, Cecília sempre pensava, usando os parâmetros que conhecia de sua infância. Ali, contudo, dormia apenas Dom Guillermo e as mulheres da vida que ele eventualmente trazia. Não era o caso de hoje. A última, há dois dias, lançara um olhar lascivo para Cecília enquanto saía. Ela ignorou, é claro. Era assim que sobreviva.

        Pendurada na parede de frente para a cama, Henriqueta Molina de Villalba vigiava o filho, imortalizada por um proeminente artista andaluz. Cecília achava difícil descrever a sensação que aquele quadro lhe provocava, mas sabia que não era boa.

        Esta manhã, o imperador parecia estar levando a pior na luta contra suas calças, não só por sua ressaca, mas também porque os últimos anos no trono lhe renderam alguns quilos a mais. Quando achou que estava conseguindo, desequilibrou-se e segurou no mosquiteiro do dossel da cama, fazendo tudo despencar. Ele praguejou e jurou ter a cabeça de alguém. Não era a primeira vez.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora