Quando era criança, Demir costumava caçoar de seu avô e de sua suposta capacidade de prever a chegada de tempestades com seu joelho. O velho começava a resmungar de dor e logo dizia: "vem uma tempestade aí". O pior é que o velho geralmente acertava.
Anos depois, ele aprendeu com os orientais o conceito de carma, uma ideia um pouco mais elaborada, um tanto mística, talvez, do bom e velho "você colhe o que plantou". Demir suspeitava que ele era assombrado pelo carma, pois havia quebrado o joelho poucos anos depois de chegar ao Brasil e aquela coisa infernal ainda o fazia se sentir miserável sempre que nuvens se assomavam no horizonte.
Demir sentia a aproximação de uma tempestade agora.
O fato é que Passo Rubro parecia ser um lugar amaldiçoado, pairando em outro plano de existência onde o tempo era sempre borrascoso, independentemente do clima nos vilarejos vizinhos. Mas a tempestade que Demir sentia se aproximando era menos literal. O desconforto em seu joelho se fazia presente também em seu estômago.
Reunindo o máximo de forças e de coragem que conseguiu, o Rei dos Ladrões deixou seu gabinete e subiu as malditas escadas até o bar, tentando não gemer nem ofegar na frente dos subordinados. Mostrar o menor sinal de fraqueza não era recomendado ali. Encontrou três deles carregando tonéis porta afora.
— Como estamos? — Ele perguntou ao último da fila, um jovem, muito parecido com o irmão, de modo que Demir não quis arriscar dizer o nome errado.
— As últimas carroças já estão chegando, senhor — o jovem respondeu. — Nos pomos a caminho antes do pôr do sol.
Bom, Demir pensou, dando confirmação ao jovem com a cabeça e o dispensando com a mão. Queria se ver longe daquele fim de mundo deprimente o quanto antes. A guilda se mudaria para o leste, mais perto da capital paulista e um dia, quem sabe, para dentro da própria capital.
Ao ganhar a rua, a luz do dia, tão embaciada, pouco fazia para convencê-lo de que ele havia saído de seu covil. Um rapaz o abordou com um acordeão.
— Onde ponho isto, senhor?
Demir fez um gesto de dispensa com a mão. Confuso, o rapaz saiu, arriscando alguns acordes no instrumento. Demir olhou em volta.
A cigana vistoriava o embarque do sistema de filtragem de água, que teve que ser desmontado e ganhou sua própria carroça. Seus brincos tilintaram quando ela se virou para encará-lo.
— Sabe que este lugar vai morrer quando formos embora, não sabe?
Demir suspirou alto.
— Ai, ai, Alba, Alba, não me enlouqueça, por favor! — Ele protestou com os braços levantados, então apontou para a cidade ao redor. — Este lugar? Ele já está morto. E nós não podemos morrer junto com ele. E mais, um país onde ladrões fazem mais pelo povo do que os líderes é um país perdido, então por que nos importar?
— Só estou dizendo — a mulher se defendeu, a voz traindo uma leve reprovação. — Mas seus amigos não virão dar uma olhada na fábrica? Não é melhor esperar?
— Eu fiz minha parte. Mandei a mensagem, como Samuel pediu. — O turco fez uma pausa, olhando para o céu e sentindo aquela inquietação voltar a crescer. — Se alguém virá, eu não sei, mas se vier, é melhor estarmos longe. Já nos arriscamos demais com os Anjos.
— Eu avisei para não tentar vender o colar.
O Rei dos Ladrões fechou o punho na frente do próprio rosto, abrindo e fechando os dedos enquanto sufocava a raiva e reformulava as próximas palavras.
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Engel - O Prelúdio dos Anjos de Ferro
AventuraO Imperador está morto. A notícia pegou o país de surpresa, acabando com as esperanças de muitos. Cerca de um ano antes, Dom Pedro II renunciava ao trono em favor do seu então desconhecido irmão, Dom Guillermo, e partia para o exílio na Áustria. A e...