22 - O Tipo Assassino

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Mais alguns quilômetros e estaria tudo resolvido. Samuel esforçava-se para acreditar nisso. Alguém lhe disse uma vez que se as coisas saíssem do controle, bastava desistir de tudo e começar do zero, com uma folha em branco, cheia de possibilidades para fazer o que é certo e evitar os erros que malograram a tentativa anterior.

        Aquilo lhe soara covarde, uma fuga de encarar a situação e tentar remediar o que já está em curso, mas ele se pegou optando por essa abordagem mais de uma vez ao longo dos anos.

        Mas o que ele poderia fazer agora? De um jeito ou de outro, ele entregaria Pandora, concluindo, assim, sua missão, ele entregaria o relatório sobre Rafaela, que deixaria de ser sua responsabilidade, e se, um dia, outro recruta fosse colocado sob seus cuidados, ele saberia lidar melhor com a situação. Por ora, bastava manter as duas vivas.

        Em determinado ponto, a estrada foi desvanecendo, perdendo os contornos, até desaparecer e forçá-los a entrar na mata. O terreno era irregular e ainda estava molhado, dificultando a locomoção, mesmo para o indígena.

        A leiteira chegou a escorregar duas vezes, deixando marcas amarronzadas na barra de seu vestido, e ela teria se esborrachado se Samuel não estivesse sempre por perto para ampará-la, mas em nenhum momento ela reclamou.

        Não havia uma única nuvem no céu, o que foi bem-vindo quando estavam na estrada e podiam se aquecer sob o sol. Conforme avançavam pela mata, contudo, sua luz era filtrada e o ar parecia demasiadamente gelado. Samuel sentia que esse seria o cenário para os próximos dias. Em tais circunstâncias, uma noite de travessia numa barca velha sem aquecimento não lhe soava nada convidativa.

        — Não devíamos esperar pela Rafaela? — Pandora perguntou, em meio a arquejos.

        Havia um toque de súplica em seu tom, um minuto para respirar, além do remorso de imaginar que ela poderia ser a causadora da desavença. Contudo, Samuel não queria parar, queria avançar o mais rápido possível. Além disso Rafaela sabia para onde estavam indo e, muito provavelmente, havia tomado a dianteira.

        — Não é preciso se preocupar com ela — foi sua resposta. — Se ela não puder se virar nessas circunstâncias, ela está no trabalho errado.

        — Mas e se tiver algum animal selvagem na mata?

        — Tenho certeza de que ela ficará feliz por ter algo para socar.

        O anjo ouviu quando os passos da moça cessaram. Ele se virou para encontrá-la com uma expressão apreensiva. Samuel se sentia irritadiço, culpava a privação de sono por isso, até ouvia um zumbido persistente em seu ouvido, mas ele respirou fundo, não queria descontar na coitada.

        — Pandora, por favor...

        — Não está sendo duro demais com ela?

        — Acredite, não estou — seu tom ficou um pouco mais duro. — Rafaela tem uma visão um tanto distorcida, fantasiosa, do nosso trabalho. Ela precisa aprender que temos objetivos claros que devem ser cumpridos e deve aprender a seguir ordens.

        — Mas...

        Samuel procurou no chão ao redor até encontrar uma marca distinta.

        — Vê aquilo? — Ele apontou. — São pegadas da Rafaela. Apesar da teimosia, ela não é nenhuma amadora, ela recebeu treinamento, ela pode lidar com ameaças. Quando alcançarmos a barca, pode ter certeza de que ela estará nos esperando de cara emburrada.

        Pandora pareceu satisfeita somente o bastante para voltar a andar, em silêncio, de cabeça baixa. Claramente, a harmonia entre as partes vinha em primeiro lugar para ela. Samuel se pegou pensando que aquilo tudo talvez fosse um grande erro. Se um dia ascendesse ao trono, a pobre garota seria massacrada pela politicagem.

Engel - O Prelúdio dos Anjos de FerroOnde histórias criam vida. Descubra agora