Capítulo 41: Inflamei-me

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Meus pulsos e tornozelos já estavam machucados, eu sentia ardência e sangue escorrer, uma dor aguda me atingia pois eu não parava de me debater naquelas algemas. Tentava me jogar para cima e para baixo, fazer fogo apenas com a minha mente, mas nada me permitia quebrar aquelas algemas. Mesmo tentando acertar meus sequestradores, eles pareciam muito bem preparados com suas roupas à prova de fogo, e sem conseguir me mexer, direcionar o fogo com meus movimentos, minha precisão era muito mais limitada. O líquido verde que Wickham injetou em meu corpo parecia deixá-lo ridiculamente mais fraco e retardar meu raciocínio. Com o tempo, fiquei fraca demais até para conseguir usar magia.

E a cada vez que eu me debatia, Wickham parecia mais irritado. Provavelmente, também por influência da bebida alcoólica que continuamente virava na garganta, que eu percebia que estava, pouco a pouco, lhe arrancando o filtro.

— Pare de se debater, garota estúpida! — Wickham gritou, jogando longe o copo de vidro no qual bebia uma cerveja. Ele veio até mim e chutou meu rosto, me fazendo grunhir e cair deitada. — Você está lutando para não ver seu pai, para não acessar o que é seu por direito, não entrar em contato com sua verdadeira identidade! Tem noção de como sua luta não faz sentido algum? Está lutando por alguém que nunca sequer viu! Que não liga pra você! Por alguém que está te privando de quem você é!

— Não… — Ele chutou minha barriga, eu senti dor e me desesperei por não conseguir protegê-la, pensando naquela criança sendo gerada em mim que estava sofrendo com aquele impacto. — Não é o que eu sou… eu não sou um monstro.

— Você é sim! Você nasceu do Hamartía! Eu daria tudo, daria meu sangue e minha vida para ser você! — Esbravejou, continuando a me chutar com força contra a parede e levantando-me pelos cabelos. — Tem ideia do que é ser patético? Do que é ter potencial desperdiçado? Eu nasci numa família sem ambição, tive pais e um irmão sem ambição, servos desse tal Oleiro que nunca deu riqueza e poder de verdade a eles. Mas eu sou diferente, eu busco a grandeza, e você a tem e age como se não fosse nada!

Eu grunhi agoniada, com minha respiração descompassada, meu couro cabeludo doía, eu me sentia febril. Ele me lançou novamente ao chão.

— Mas isso não vai mais importar. Agora você vai estar diante dele. — Completou, com a voz séria.

Olhei para Circe que permanecia sentada com o rosto sem vida, para Hassan que permanecia de costas fazendo a guarda, e naquele cenário de completa desesperança, onde eu sequer sabia quão perto estava de Laocideia, a cidade de onde jamais poderia ser resgatada, sem ter certeza do quão bem a criança em meu ventre de fato estava. Meu sangue correu forte por minhas veias e toda injustiça me veio à tona.

No fundo você sabe que Wickham tem razão, Brooke. Qual o sentido de escolher o sofrimento ao invés da grandeza que há ao meu lado? Eu não pedi para ele te trazer, mas será que tal desleixo não é o empurrão que você precisava? Não é o destino nos unindo?

As lágrimas escorreram por meu rosto e senti o cheiro de enxofre cada vez mais presente em minhas narinas.

— Eu não quero… para… — Pedi baixo, mas o cheiro não se afastava, meu coração batia acelerado.

Qual o sentido? Qual de fato é o sentido?

Uma vez, o Oleiro formou o barro, e do barro formou o mundo e cada ser que nele há. Sobre os humanos depositou a vida na forma de ar, a vitalidade na forma de fogo.

A primeira história das Crônicas do Oleiro voltava à minha memória, enquanto eu pensava na minha origem, em quem eu sou, em qual de fato é meu papel. Estaria nas crônicas que li essa resposta?

Ele criou os humanos na forma de sua silhueta verdadeira. Entretanto, houveram dentre seus servos celestiais aqueles que não se contentaram com sua forma e seu papel, tornaram-se monstros e envenenaram a mente dos primeiros humanos para aceitar seu sangue, e assim se corromper. Dessa forma, foram banidos ao Abismo, enquanto os seres humanos precisaram ser direcionados pelo Oleiro, para novamente ser da forma que foram criados para ser.

Lembrei-me também de outro texto que se conectava. Uma carta de um vidente para outro membro da Ordem.

O Oleiro os direcionou, lhes deu sua chance de escolha. A fé se tornou sua possibilidade. Enquanto confiarem no Oleiro e entenderem seus princípios, saberão como prosseguir e estarão perto de sua verdadeira forma, o próprio Oleiro lhes guiará. O Abismo é mestre em mentir, em distorcer os humanos quanto ao que de fato são. Entretanto, meu caro Ravi, cada humano nesse mundo é uma criação do Oleiro, criada para cumprir seus propósitos e viver seus princípios, capacitado a vencer o Abismo na Terra.

Meu corpo espasmava e se debatia, o cheiro de enxofre não parava, vi subir a sombra pelo meu braço mecânico, e lembrando de tudo que li, minha mente clareou, pensando em minha única saída.

— Eu tenho a tentação diante de mim, eles querem roubar minha escolha e eu não quero acreditar que o que fazem é certo. — Eu tossi, me debatendo e olhando para a sombra que subia em meu braço. — Você me fez do barro e fez questão que minha humanidade me desse a chance de escolha. Eu sei que sou mais impura que todas as outras pessoas, sei que se eu sucumbir, há um trono me esperando como filha do Abismo. Mas eu não quero. Eu não quero um trono que custe sua centelha. Não quero uma glória que me torne um monstro sem discernimento. Não quero uma glória que me faça te decepcionar. Não você, que me acolheu.

Wickham me olhava com repulsa.

— O que está falando, garota? — Inquiriu, enraivecido.

Toda a minha vida passou diante de mim. Minha vida na torre, isolada, sob os olhares de repulsa. Tendo poucos fragmentos da história, fragmentos esses que me fizeram conhecer o criador distante, para um dia eu conhecer o criador que fala diretamente comigo. Poucos fragmentos que me fizeram entender o que era ser humana, mais do que qualquer outro humano que estivesse em volta de mim.

Ainda que o Abismo falasse comigo, eu nunca o ouvi cegamente. Por mais doloroso que possa ser, a centelha divina não me deixa ser nada além de humana. É o que sou e não posso ousar mudar. Os princípios que conheci são algo que não consigo ousar recusar. A centelha do Oleiro que há em mim é mais preciosa para minha vivência que todas as batidas do meu coração de carne.

Ainda que eu morra, saberei que nunca estive sozinha.

— As vezes nada faz sentido. As pessoas são más e a vida é dolorosa. A única certeza que tenho, é que o senhor me tocou e eu me inflamei no desejo da tua paz. — Continuei, as lágrimas continuavam a sair, o cheiro de enxofre já não estava mais presente, Wickham me encarava confuso. — Grande Oleiro, me deixe ser humana nesta terra ou me mate agora! — Exclamei.

O caminhão parou e sem nos dar tempo de nos perguntar do porquê, um grande ruído preencheu o ambiente quando o metal na lateral do caminhão foi rasgado e um grande buraco fez a claridade entrar. Wickham olhou para o lado e arregalou os olhos, Hassan e Circe entraram em posição de combate. Trevor invadiu o caminhão com um forte chute e Ronan entrou logo depois, parando agachado.

Eu não tive tempo de assimilar coisa alguma, quando dei por mim, Ronan estava se transformando em alguém que eu não conhecia e usando magia de ferro para nocautear Circe com rapidez e tentar atingir Wickham com o material do próprio caminhão, e Trevor estava vindo em minha direção para me soltar.

Meu coração batia disparado, arrítmico, incapaz de administrar as próprias emoções, enquanto um raio de esperança clareava meus pensamentos.

Trevor não conseguiu chegar até mim. Hassan o acertou um soco que Trevor bloqueou com os antebraços.

— Trevor, ele tá hipnotizado! — Eu gritei. Trevor olhou para mim com surpresa por um instante, mas então voltou à batalha e lançou Hassan para fora do caminhão, logo também saltando dele.

Observei o lado de dentro, Ronan, ainda transformado no manipulador de ferro, combatia Wickham, cujos olhos dourados brilhavam de forma atípica, e eu percebi que Ronan não levantava a cabeça em nenhum momento, não importando quão difícil fosse uma luta com a visão tão limitada de seu oponente.

Ao que parece, Ronan havia entendido: Wickham hipnotizava pessoas pelo contato visual.

Só tenho uma coisa a dizer...
A JIRIPOCA VAI PIAR!!!



Herdeira de Sangue e Fogo [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora