Capítulo 2: Para sentir seu calor

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Eu subi à minha torre e me olhei no espelho quebrado. Ter levado um mata leão amassou meu cabelo, meu vestido estava molhado e sujo pelas coisas jogadas nele. Eu teria que lavar ele a mão, isso se eu não esquecesse e o deixasse embolado num canto até mofar, como forma de esquecer a indignidade dessa noite.

Eu suspirei profundamente. Além de tudo, mal comi nada na cerimônia, e mesmo se tivesse comido, a comida servida ali era elegante demais para me satisfazer.

Tirei aquele vestido e pus minha velha camisola laranja, que a essa altura já estava cheia de buracos. Me aproximei de meu fogão a lenha, peguei um ovo em meu pequeno frigobar, uma frigideira velha no caixote onde guardo as panelas, minha garrafa de óleo, e o fritei, usando meus poderes. Era isso que seria meu jantar hoje.

Me sentei em meu velho colchão para comer, na própria frigideira, sem me dar ao trabalho de pegar um prato e ter mais louça para lavar. O ovo estava sem sal porque eu esqueci de comprar. Eu precisava limpar meu colchão pois a torre ajuntava poeira além do comum. Olhei para tudo em volta. Havia tijolos amostra, partes quebradas, muitas poeiras e tantas coisas improvisadas que aquilo jamais poderia ser chamado de casa. Mas era a única casa que eu conhecia.

Enquanto isso, o prefeito que em teoria tem minha custódia vive com seus filhos na capital, dando-lhes o melhor que podem receber dessa vida. Enquanto até meu braço foi negado a mim.

Eu suspirei profundamente. Eu odiava lembrar disso enquanto estava comendo.

Quando eu fiz cinco anos, foi quando a babá parou de estar frequentemente ao meu lado. Ela vinha, preparava refeições, me levava para a academia mágica, e ia embora. Às vezes ficava três dias seguidos sem vir e eu precisava me virar. Como uma criança curiosa, muitas vezes eu queria explorar o bosque próximo, mas a babá sempre me orientava para não fazer isso pois no bosque que ficava a fronteira com a cidade estado de Ésefo, poderiam haver perigos.

Mas em seus dias de ausência, muitas vezes a comida acabava e as histórias já não eram capazes de me distrair. Eu me virava comendo qualquer coisa mole que pudesse achar na torre, mas houve um dia em que a fome falou mais alto, e eu decidi procurar o que comer no bosque.

Desci pelos escombros da torre, na época não sabia usar o fogo para me levar até embaixo. Na época os escombros faziam com que a descida fosse apertada e eu tivesse que tomar muito cuidado para não esbarrar em metais afiados, ou tropeçar em madeira podre. Pensando bem, eu poderia ter me machucado gravemente ainda naquela descida.

Mas não me machuquei até chegar no bosque, onde buscando o que comer, acabei mordida com força por uma planta carnívora que se agarrou em meu braço e o perfurou até sangrar, antes de eu conseguir usar meu poder de fogo ainda imaturo para queimá-la.

Aquilo havia me deixado profundamente assustada e eu voltei correndo para a torre, vendo que a babá já havia chegado, estava me procurando, e me deu uma surra quando me encontrou por eu sair sem avisar, dizendo que se me perdesse, o prefeito Growin a demitiria. Mas ela não pensou nem por um momento que as perfurações dos dentes da planta carnívora estavam lotadas de veneno, e que a faixa que ela passou no meu braço não conteve os efeitos.

Em dois dias, meu braço não parava de doer e a ferida estava num tom de roxo escuro, com um péssimo cheiro, atraindo moscas. A babá não havia voltado, e eu entendi que precisava sair da minha torre e correr sozinha para o hospital.

No hospital, recebi o trágico diagnóstico de que aquela ferida havia necrosado por causa do veneno, e se meu braço não fosse amputado, o veneno iria se espalhar e eu morreria em cerca de uma semana. Eu chorei de medo e arrependimento, me culpando por ter ido para o bosque, quando a culpa era da babá que deixou uma criança de cinco anos sozinha e com fome numa torre. Na verdade, a culpa não era apenas dela, era do prefeito que apesar de ter a minha custódia, se recusava a olhar-me nos olhos.

A anestesia me fez dormir, e quando acordei eu já estava sem meu braço. Aos cinco anos eu havia sido amputada, e achava que a culpa era minha.

Chamaram o prefeito Growin para decidir o que fazer. Ele me olhou como se eu fosse o pior de seus problemas, e se voltou para o médico:

— Solicitem de Ésefo uma prótese mecânica em tamanho infantil. Se essa garota ficar inválida, nunca será útil em combate. — O prefeito ordenou com frieza, logo saindo dali.

Eu suspirei profundamente. Terminei de comer meu ovo frito sem sal, deixei a frigideira num canto e me joguei no colchão. Amanhã de manhã eu iria ao rio lavar louças e roupas, então não fazia diferença.

Deitada naquela cama, observando o braço mecânico que substituía meu membro perdido, me recordei de como aquela deficiência era a marca do ódio daquela cidade contra mim, da hipocrisia daqueles que são tão fruto da queda quanto eu, mas que por algum motivo me deixaram sozinha, no escuro.

Um dia o primeiro ser de luz a se tornar um monstro do Abismo corrompeu a primeira comunidade humana, dando-lhes de beber uma gota de seu próprio sangue. Desde então o mundo se tornou um lugar sujo e cruel, e todas as pessoas têm nuances de maldade. Então por que pessoas que caíram tanto quanto eu, me tratam como se eu fosse pior?

Estalei meus dedos. Uma pequena chama nasceu do impacto. Uma chama que parava na ponta do meu indicador e bruxuleava como se dançasse.

O fogo... Ele sempre esteve comigo. Ele sempre foi a luz quando escurecia e eu estava sozinha. Ele é minha maldição, e também minha única companhia.

A chama na ponta de meu dedo ainda bruxuleava quando mudou sua cor natural para a cor preta.

"Queime todos, minha menina. Queime-os e sinta seu calor".

Aquela voz... Mais uma vez. Senti cheiro de enxofre no ar, de vez em quando, ao sentir raiva, esse cheiro invadia minhas narinas, mas eu não me sentia incomodada. Parecia familiar. Parecia que aquele aroma dançava comigo. Senti a adrenalina pulsar mais rápido pelo meu corpo, de repente uma sombra tomou conta do meu braço mecânico e eu me levantei encarando aquilo com curiosidade, e indo até o espelho quebrado. Todo o meu braço mecânico estava coberto por uma sombra preta, mas de alguma forma aquilo não me deixava nervosa.

Como poderia? Uma sombra estava cobrindo todo meu braço como uma enorme luva, como eu poderia estar calma?

De algum jeito, a sombra parecia familiar.

Eu andei, olhando para meu braço coberto pela sombra, até a abertura da torre, de onde eu conseguia ver uma boa parte da cidade. Aquela torre abandonada era abominada por todos na cidade desde que fui mandada para morar nela. E vendo toda a cidade abaixo de mim, foi como se meu sangue clamasse com mais força.

Algo dentro de mim se agitava como as chamas da minha magia, algo em mim clamava por violência.

"Queime-os, minha criança. Seu sangue clama pelo seu calor"

Fogo negro revestiu a sombra negra em meu braço, as memórias vinham fortes, e o impulso vinha como se me colocasse em transe. Eu olhava para aquela chama e ela olhava para mim.

"Faça esse lugar queimar, liberte esse poder. Faça desse fogo puro a sua liberdade."

Eu ainda olhava para aquela chama e as emoções se reviravam dentro de mim, pensando na possibilidade ou não possibilidade de obedecer àquela voz.

"Não é o que fará, minha criança."

Um toque surgiu em meu ombro, tive um sobressalto e a chama se apagou, a hipnose cessou, e eu olhei por cima do ombro. Uma fumaça branca pairava no quarto.

"Eu não te dei o fogo para a violência."

Eu arqueei ambas as sobrancelhas em choque e a fumaça se dissipou do quarto. Eu olhei para meu braço mecânico, a sombra que o revestia também havia desaparecido. Não havia mais cheiro de enxofre, o clamor por violência havia cessado.

Eu engoli em seco. O que havia sido aquilo?

Herdeira de Sangue e Fogo [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora