Capítulo 1

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O som do motor reverberava no campo aberto. Uma mulher vestida de negro conduzia o veículo pelo campo árido, enquanto o vento fazia com que seus cabelos curtos dançassem ao ar. Seus óculos protegiam seus olhos asiáticos da areia.
Acoplado a moto, um sidecar que nada mais era que um barril de ferro adaptado para um passageiro, chacoalhava sempre que seu pneu passava sobre alguma pedra ou buraco, fazendo com que o passageiro soltasse algum xingamento. O homem que tentava se acomodar nele estava claramente desconfortável, mascando um pedaço de grama. Ele, igual à condutora do veículo, também trajava roupas negras e mantinha os olhos negros entreabertos contra o vento.
— Falei, Gabriel – disse a mulher sem desviar os olhos da estrada de terra batida. – Devia ter colocado os óculos! Mas é teimoso.
Ajeitando-se em seu pequeno cubículo de ferro, o rapaz desviou de um galho que lhe roçou a bochecha. Ambos dirigiam por um caminho já muito usado, pois diferente do terreno à volta, de gramas e árvores, este era de terra batida, igual aos que as formigas criavam na vegetação.
— Naomi – respondeu o rapaz que esfregava onde o galho o havia acertado. – Não discordo nem um pouco.
— Igual à ideia de usar esse barril ao invés de usar outra moto.
— Sobre isso não tenho arrependimentos – mentiu Gabriel.
Alguns pássaros voavam ao fundo e era possível ver eventuais coelhos correndo de uma moita à outra, esquilos em algumas árvores e até mesmo ratos selvagens. Gabriel conseguiu ver entre as folhas de algumas árvores, um olho d'água.
— É um lugar agradável – disse para a companheira.
Ela somente concordou com a cabeça enquanto seguia o caminho por uma curva acentuada à direita. Viajavam há poucas horas, e a diferença do início da jornada era nítida e extremamente mais agradável — de um deserto para um bosque —, mas sentiu um arrepio ao lembrar de algo crucial e se virou para o carona.
Contudo, antes de perguntar o que queria, percebeu que Gabriel havia pensado o mesmo e já havia sacado o medidor Geiger, que para alívio de ambos não soltou o sinistro som de quando havia radiação no ambiente.
— Está limpo – disse Gabriel, com a voz embargada de alívio. – Mas se eu não me engano, não há Mancha nessa área.
Naomi também não lembrava de nenhuma das Manchas naquela região. Passaram por uma havia algumas horas, uma grande área com níveis alarmantes de radiação onde nenhum ser vivo conseguia viver. Eram, literalmente, lugares em que nada nascia, um grande espaço vazio, uma mancha na Terra, por isso o nome.
Aquilo era um resquício da Terceira Guerra dos Antigos como todos sabiam muito bem; uma guerra a qual destruiu boa parte da humanidade. As Manchas permaneceram para alertar os que ficaram a não cometerem o mesmo erro.
— Sim – falou Naomi quando um solavanco da moto a fez sair de seus devaneios. – Sem placas de aviso nem nada. Realmente é um bom local para se viver.
Mas ambos sabiam que não estavam a passeio e que o motivo de sua viagem era sombrio.
— Estamos na cola deles há quase um mês – disse o rapaz. – Provável que tudo termine hoje.
Naomi somente concordou.
Passaram dias perseguindo pistas e testemunhas de traficantes de escravos, foram desleixados e a dupla teve diversas oportunidades de acabar com eles, mas resolveram que esperariam todos se juntarem para exterminá-los de uma única vez. Esse era o trabalho deles como membros de uma organização armada, que era dividida em três círculos: os Ponta de Lança, especializados no combate corpo a corpo; os Infiltradores, treinados na arte de invadir bases e em batalha à distância; e finalmente a Sombra, um grupo que lidava com assassinato usando venenos ou uma lâmina escondida. Usavam anéis negros em seus polegares para informar a qualquer desavisado sobre suas funções naquele mundo.
— Pare na próxima curva – falou Gabriel, arrumando-se no seu espaço limitado.
— Por quê?
— As marcas parecem aumentar à frente.
Ela olhou novamente para a estrada onde seguia o rastro dos carros que passaram por ali antes e viu mais à frente que algo realmente estava diferente não só na estrada, mas na vegetação também. Seguiu o que o rapaz disse, parando um pouco antes da curva.
Com movimentos ágeis, Gabriel saltou do sidecar para o chão e esticou as costas prazerosamente, sendo possível ouvir leves estalos. Naomi saiu da moto com alguma dificuldade, afinal suas pernas estavam meio duras por ter passado tanto tempo sentada, e massageou um pouco a bunda para aliviar a dor.
Agora, sem o ronco do motor, era possível ouvir a vida em todas as direções e um cheiro de água fresca os invade. Por trás da moita que não fora arruinada por algo que saiu por ela, se encontrava outro olho de água.
— Esta região é cheia de olhos de água – disse Naomi mais para si do que para o companheiro.
Gabriel olhava as marcas no chão e a grama destruída por rodas que saíram pela floresta. Ficando de cócoras, o rapaz colocou a mão nas marcas que seguiam a estrada, no novo rastro vindo da floresta e foi em direção às plantas esmagadas. O caminho do veículo era óbvio até mesmo para um leigo, afinal galhos e plantas esmagadas o formavam.
— Então? – indagou Naomi.
— Bem, dá para perceber pela fundura das marcas na estrada, que eles pararam aqui um pouco, esperando – disse apontando o caminho entre a vegetação. – E o que quer que tenha os encontrado aqui, levava algo pesado, muito mais pesado que a carga deles.
— Mais pessoas?
— Talvez, mas esse caminho não faria sentido se fosse isso. – Gabriel olhou por mais um tempo, analisando tudo. — Não vai resolver em nada ficarmos parados aqui.
— Isso é inesperado – falou Naomi, vendo o companheiro concordar com a cabeça. – Eles foram bem previsíveis até agora. Estranho.
Gabriel começou a remexer o fundo do barril e logo em seguida trouxe seus equipamentos.
— Não estamos tão longe mais – disse o rapaz que voltou a procurar coisas no fundo do sidecar, voltando com as mãos cheias.
Jogou para Naomi sua bolsa de cintura, onde guardava seus venenos, pomadas e algumas bolinhas de vidro com pólvora dentro. Ela foi até o lado do barril onde ele colocava as coisas, pegou sua faca e a prendeu à coxa direita, deixou a bolsa no cinto, escondida em suas costas. Sem perder tempo, atou ao mesmo cinto outro pequeno em que seis facas de arremesso se encontravam, e então, atou um último, com três outras facas de arremesso, que prendeu em seu calcanhar esquerdo. E por fim, prendeu sua katana, uma longa lâmina negra que herdou de seu mestre. A arma era diferente das clássicas; a sua não tinha a lâmina curva e, sim, reta, ficando às suas costas.
Finalmente estava pronta. Checou tudo mais uma vez para confirmar se os apetrechos estavam presos decentemente, e ao ficar satisfeita, se virou para o companheiro, que semelhante a ela, estava preparado.
Gabriel levava uma faca na coxa direita e o cinto com venenos e pomadas, semelhantes ao da companheira. Em suas costas, estavam escondidas oito facas de arremesso presas ao cinto e mais duas em cada calcanhar. Na coxa esquerda, uma faca de quarenta centímetros, e a herança que ele recebera de seu mestre estava escondida atrás da bolsa em suas costas.
— Vamos repassar – falou Naomi para o companheiro, que por sua vez fez uma careta de tédio. – Gabriel, é sério.
— Ok, ok – respondeu sentando-se ao lado do barril e apoiando-se nele. Levou uma nova grama à boca.
Naomi caminhou até uma árvore e se apoiou nela, ficando em frente ao companheiro. Com um aceno de cabeça ela o incentivava a falar.
— Bem, segundo nossas informações, estamos atrás de seis pessoas.
— Mas com esse novo veículo podemos supor que sejam pelo menos oito agora.
— Sim, nada que não possamos dar conta.
— Aumentei em duas, pois estou sendo otimista. Pode muito bem ser dez ou mais.
Gabriel olhou para o céu que começou a escurecer num tom alaranjado. Aves voavam de um lado para o outro sobre eles, buscando um local para dormir.
— Ainda temos o elemento da surpresa – falou Gabriel se voltando a Naomi.
— Sim, mesmo assim é bom estar preparado.
Ambos ficaram mais um pouco somente curtindo o silêncio que vinha junto à noite, afinal, as coisas logo seriam caóticas. Por fim, Naomi se levantou e com poucos passos ficou ao lado da moto. Com a ponta do coturno, cutucou Gabriel para que ele se levantasse.
Com certa preguiça, ele obedece e se coloca em movimento.
— Melhor continuarmos a pé – começou Naomi. – Já está anoitecendo, então provavelmente eles levantaram acampamento, ir de moto iria chamar atenção.
Com um aceno de cabeça o rapaz a segue colocando-se logo atrás do barril, pois a companheira já segurava o guidão. O veículo fazia um som absurdo, como boa parte dos veículos, afinal não existia mais fábricas Pós Terceira Guerra dos Antigos, sobrando somente as carcaças antigas.
Levaram a moto para dentro da vegetação alta, escondendo-a perfeitamente. Só seria possível achá-la se alguém realmente soubesse que havia algo lá.
— Melhor irmos então – disse Gabriel assim que voltou para a estrada. – Está na hora de caçar!
— Você sabe que eu não gosto que você coloque assim – resmungou a jovem.
— Correção – disse ele, virando-se a ela com um sorriso arteiro no rosto. – Está na hora de trabalhar.
Assim, ambos seguiram pela estrada de terra enquanto eram engolidos pela noite.


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