Capítulo 5

2.9K 276 4
                                    

Senti-me desconfortável com os seus olhares sobre mim e tive vontade de voltar a subir as escadas e esconder-me no quarto até elas saírem, mas não o fiz. Talvez se fosse já embora elas não dissessem nada, de qualquer das formas era essa a minha intensão. A mais velha aproximou-se de mim, sempre com um olhar carregado e demasiado sério.

Indicou-me a cozinha e eu segui para a mesma pedindo que não parassem o seu trabalho por minha causa. Elas anuíram e ao entrar na divisão ouvi o aspirador ser ligado novamente.

Fitei a refeição sobre a mesa e questionei-me se eles queriam alimentar um batalhão de soldados famintos. Havia demasiada comida ali em cima e aquilo fez-me sentir mal pois eu sabia que, embora estivesse a morrer de fome, não comeria nem metade daquilo. Iria quase tudo para o lixo com tanta gente a passar fome por aí. Afastei os pensamentos solidários da minha cabeça e sentei-me iniciando a refeição.

Quando terminei levantei a minha loiça e preparava-me para lavá-la quando fui interrompida pela empregada que aparentava ser a mais nova.

"Deixe estar, nós tratamos disso" Ela retirou-me o prato das mãos sorrindo amavelmente.

"Mas eu não me importo, posso muito bem fazer isso."

"É o nosso trabalho" Ela ripostou empurrando-me para que me afastasse do lava loiça.

"Podemos fazer as duas então." Desviei-me dela para que parasse de me empurrar e ela riu-se de mim. Não pude evitar rir também e acabámos por concordar lavar as duas enquanto a outra mulher continuava com a aspiração. Eu ensaboava e ela passava por água.

"Annie, já agora" A rapariga de cabelos ruivos apresentou-se sorrindo docemente. Ela era bastante bonita, os cabelos assemelhavam-se ao fogo e os olhos verdes eram intensos e brilhantes. O sorriso doce denunciava uma covinha na bochecha esquerda, o que era bastante engraçado.

"Melanie" respondi também a sorrir-lhe. Ela parecia-me ter uma aura positiva e parecia impossível não sorrir para ela.

No entanto sentia-me observada por mais alguém e isso não me estava a deixar confortável. Voltei o rosto de forma a ver a passagem para a sala e a mulher de cabelos negros e pele cor de azeitona continuava a sua aspiração, mas sem prestar atenção, pois o seu olhar permanecia fixo em mim.

A forma como me analisava fez-me arrepiar e depressa retornei a olhar para o copo que tinha nas mãos cheio de sabão.

"Não ligues ela é doida, diz que te conhece de algum lado mas não sabe de onde" Annie informou-me com um encolher de ombros. Enruguei a testa confusa, era impossível ela conhecer-me. “Os portugueses são um pouco estranhos"

"Os quê?" As minhas mãos começaram a tremer instantaneamente e o copo de vidro caiu-me das mãos colidindo com o metal do lava loiça criando um enorme barulho. A ruiva saltou de susto e olhou-me preocupada.

Deixei de sentir as pernas, o meu coração acelerou e depressa fixei a mulher que agora parecia mais atenta ao que fazia.

"Os portugueses, a Marina é portuguesa" Ela explicou ainda a olhar-me preocupada. "Há algo de errado com isso?"

"Não! Não de todo." Apressei-me a responder agarrando o copo de novo e continuando o meu trabalho. Annie ainda pareceu hesitante quanto a continuar, mas acabou por não ligar mais ao assunto.

Depois de terminarmos a loiça elas indicaram-me que iriam fazer o almoço mas eu não as deixei. Queria ser eu a fazê-lo, como forma de agradecimento ao Liam por me ter deixado ficar esta noite e por toda a sua amabilidade. Elas não pareceram muito importadas com isso pois era uma forma de saírem mais cedo do trabalho.

Assim que elas abandonaram a mansão dirigi-me ao andar superior e retirei a T-shirt atirando-a para cima da cama. Entrei na casa de banho e olhei as ligaduras que circundavam o meu corpo que agora já não detinham a sua cor original. O lado direito do meu corpo estava completamente manchado de vermelho e isso fez-me arrepiar.

Abri o armário por baixo do lavatório e encontrei uma pequena bolsa de primeiros socorros. Fiz novas ligaduras com o que consegui. Eram as segundas ligaduras que fazia hoje e nem duas horas passaram. Voltei a arrumar tudo no sítio e regressei ao quarto onde fiz a cama.

As feridas nas zonas lombares do meu corpo estavam a deixar-me preocupada pois elas pareciam não querer sarar. Doíam imenso mas eu acho que já estava tão habituada àquela dor que já nem ligava. No entanto o sangue continuava a escorrer e começava a acreditar que isto seriam como as dores da alma, aquelas que nunca chegam a sarar totalmente.

"Onde? Onde é que ela está?" Gritei ao entrar no escritório. César ergueu o olhar do seu computador para mim percebendo de imediato ao que me referia.

As lágrimas acumulavam-se nos meus olhos sem que eu as pudesse controlar, e fugiam pelas maçãs do meu rosto sem que eu as pudesse impedir. Estava em pânico e isso estava a impedir-me de ver, qualquer coisa que fosse, direito.

"Está onde sempre deveria ter estado" Ele murmurou num tom amargo o que me fez olhá-lo assustada. Eu não entendia nada do que se estava a passar à minha volta, parecia que tudo se estava a desmoronar, eu já não sabia no que acreditar.

Ele ergueu-se e aproximou-se de mim contornando a secretária.

"O que é que queres dizer?" Interroguei embora receasse não gostar da resposta. Ele colocou as mãos sobre os meus ombros e olhou-me severo.

"A Nana teve de ir embora." Revelou tão calmo que me custou a acreditar que estaríamos a falar da mesma pessoa. "Ela não podia ficar mais aqui."

"O quê?" Gritei com o choro a tornar-se cada vez mais compulsivo e se alguém me visse pensaria que sou uma tresloucada.

" Ela não estava feliz aqui, lamento." Num segundo puxou-me para si abraçando o meu corpo tão mais pequeno que o seu. A minha face bateu contra o seu peito e as lágrimas logo molharam o casaco cinzento da sua farda. "Pelos vistos ela não gostava assim tanto de ti." Acrescentou fazendo com que mais lágrimas se seguissem àquelas e os soluços surgissem do fundo do meu peito.

Aquilo não podia ser verdade, simplesmente não podia. Depois de todos aqueles anos juntas ela partia assim? Deixando-me apenas um estúpido colar com uma frase e o nome de uma região inglesa escritas? Depois de me fazer prometer que seguiria sempre o meu coração, ela vai embora e deixa-me sozinha. Será que ela seguiu o seu coração também?

Acabei por corresponder ao abraço do meu irmão mais velho e ele apertou-me mais contra si deixando-me ficar assim por algum tempo. No entanto toda aquela história era bastante confusa para mim e estava a custar-me muito acreditar nela.

Comecei então a abrir os armários e todas as gavetas que encontrasse para saber o que detinham no interior. Depois de tudo devidamente pronto comecei a procurar os alimentos na dispensa e no frigorifico. Talvez lhe fizesse um prato tradicional, mas talvez ele não estivesse habituada, sempre ouvi dizer que os ingleses não comem muito ao almoço.

Suspirei e encolhi os ombros. Se ele não quisesse comer poderia deixar para o jantar ou assim. Acabei por fazer então a refeição muito demoradamente. Embora quisesse partir antes de ele chegar, sempre tive a mania de deixar tudo perfeito, e agora não seria exceção.

Para além de ter de estar sempre a procurar onde eram as coisas pois não sabia de cor a minha mania da perfeição, estavam a fazer-me atrasar e eu não queria. Se partisse antes de ele chegar seria muito mais fácil e simples.

“Melanie, cheguei” Merda, tu e a tua mania de deixar tudo perfeito pensei para mim própria quando A voz do rapaz em quem passei o dia todo a pensar surgiu interrompendo o silêncio da casa. 

The Runaway  |l.p|Onde histórias criam vida. Descubra agora