Capítulo 8

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A chuva caía torrencialmente mas ainda assim eu conseguia ouvir o barulho do meu estômago vazio. As minhas energias estavam a gastar-se por completo, fazia dois dias desde que saí de casa do Liam e desde então que pouco ou nada comi. Tenho passado o tempo a vaguear pelas ruas, durmo nos abrigos dos mendigos, bebo água nos cafés e de vez em quando arranjo um pedaço de sandes ou o final de uma lata de atum.

A minha cabeça latejava e sabia que estava a começar a ficar doente mas eu não podia ficar ali parada. Saí de debaixo do toldo em que me abrigara e coloquei o capuz do sobretudo na cabeça impedindo o meu cabelo de se molhar. Dei graças a Deus por me ter lembrado de o roubar no barco de pesca. Não sentia bem em fazê-lo mas tempo de desespero exigem medidas desesperadas.

Um arrepio percorreu a minha espinha ao recordar-me que essas eram as exactas palavras ditas por ele no dia em que o confrontei. As desculpas que ele usara eram baixas, esfarrapadas e absurdas na minha mente. Primo Levi escreveu questionando-se se o Homem era mesmo um ser portador de alma e eu faço-me essa questão agora. Se isto é um Homem. Não entendia como conseguia ser tão frio ao ponto de todas aquelas crueldades e como seria possível que a apenas alguns países de distância existia alguém tão dócil como Liam.

Ele parecia-me ser um rapaz de oiro, além de todos os seus pormenores físicos a sua aura era calma, divertida e acolhedora. Senti-me tão bem no pouco tempo que estive com ele, mesmo sem o conhecer. E isso é o que me surpreende mais, sem me conhecer e depois de ter invadido a sua casa ele deixou-me ficar, aliás, ele pediu-me para eu ficar. Mas eu não o podia fazer, ele não merecia que eu estragasse a sua vida, sou um perigo… uma bomba que pode explodir a qualquer momento e ele era a pessoa que eu menos queria ter por perto nesse momento.

Risos ruidosos surgiram nas minhas costas e a minha fome dissipou-se, dando lugar aos nervos. Não agora, por favor. Pensei para mim mesma. Acelerei o passo o máximo que consegui, mas era impossível distanciar-me do grupo de rapazes que me seguia. Estava fraca e os meus sentidos traíam-me, mesmo que começasse a correr provavelmente apanhar-me-iam num piscar de olhos. Tinha de pensar em algo e rápido.

“Ela está em Sintra não está?” César questionou calmamente. “Ela nunca conseguiria escapar da cidade, ela nunca saiu daqui” Voltou a encarar o velho que não lhe respondia. O olhar negro e carregado do general fitava o rosto que eu ainda não conseguira ver. “É Sintra, não é?”

“Não!” O homem gritou-lhe em resposta e até eu percebi que era mentira. Um sorriso vitorioso surgiu nos lábios do meu irmão que se endireitou e ajeitou o casaco da farda.

“Ótimo” Sibilou erguendo a mão na direcção de Cristóvão que colocou um objecto negro nas suas mãos. César apontou-o à cabeça do homem com determinação e frieza fazendo o meu corpo gelar quando me apercebi do que se tratava. “Já não me serves de nada” as palavras saíram com uma frieza tal que eu questionei-me que pessoa seria aquela. Não podia ser ele, aquele não era o meu irmão mas sim alguém a substituí-lo. E eu não gostava desse alguém, de todo. Era frito, bruto, amargo e severo demais. César nunca fora alguém de afectos ou de palavras dóceis, raramente aparecia no meu quarto para um beijo de boa noite, raramente me abraçava em público e sempre tinha aquela postura rígida típica de um militar. Mas nunca nada como isto, era impossível ser a mesma pessoa. Eu não queria acreditar que era a mesma pessoa.

O som explosivo cortou os meus pensamentos e um grito de susto britou da minha boca quando vi o sangue que surgiu na cabeça do velho provocado pela bala, junto com o corpo sem vida que depressa caiu no chão. O meu corpo agiu de forma automática e sem que eu pudesse sequer pensar nisso as minhas pernas moveram-se o mais rápido possível fazendo-me sair dali a correr.

The Runaway  |l.p|Onde histórias criam vida. Descubra agora