V - Demônios

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Henry sentou-se diante de sua escrivaninha. Abriu o velho caderno de anotações que, diferente do seu bloco de notas, era usado para contar fatos cotidianos. Um diário secreto que mantinha sobre o pretexto de não perder nada de sua via, nenhum sentimento que pudesse ser útil mais tarde, durante a criação de suas ficções.

Ele respirou fundo. Seus ombros estavam tensos. O celular, que o despertou no meio da noite, ainda se encontrava sobre o criado mudo.

 Era como acordar de um pesadelo, só que de forma inversa. A realidade que estava errada, não seus sonhos. Antes de ser lembrado, por aquela mensagem, sobre a existência daquele problema difícil em sua vida tudo ia inesperadamente bem.

"Hoje fez um mês que saí de Nova York. Há três semanas frequento diariamente o Green Coffee, pois lá é onde me sinto mais apto a escrever."

Sua grafia fina marcava o caderno de forma rápida e nervosa. Já que não costumava a falar de seus problemas com os pais, a única pessoa com quem Henry podia contar era consigo mesmo. Não havia forma melhor de expulsar seus demônios do que os colocando em forma de texto.

"Charlie falou comigo pela primeira vez, depois de tudo que aconteceu. Ele mandou uma mensagem. Ao que parece, ainda continua furioso comigo. Não sei como explicar para ele que não tenho culpa, pois já disse de todas as formas possíveis. Eu não fiz nada. Por quanto tempo vou viver sob esse véu de farsa?"

Henry soltou a caneta e deixou-a cair sobre a mesa. Escondeu o rosto com as mãos. Estava um tanto sonolento, no entanto isso não o impedia de estar assustado... ainda mais diante aquela mensagem perturbadora vinda no meio da madrugada.

Ele se levantou da cadeira e abriu as cortinas. Da janela com vista para o bosque, observou que o sol ainda não havia nascido. Tudo parecia mergulhado naquela escuridão noturna. 

Durante o mês que transcorreu desde sua chegada à cidade, Henry começou, em algum ponto, a acreditar que seus problemas ficaram para trás.

Tinha, inclusive, se obrigado a esquecer a existência de Charles, por mais que ele estivesse em sua vida desde que Henry se tinha por gente.

Agora as coisas eram diferentes e a culpa, certamente era de John! 

Por que ele tinha de fazer aquilo?

Henry se levantou, caminhou até a cama e desligou o telefone. Decidiu que o melhor a fazer era sair do quarto, ficar o mais distante possível das mensagens de seu amigo nova-iorquino.

 Era muito mais feliz ali, escrevendo, mergulhando diariamente na fantasia e na história que criou para o rapaz de cabelos platinados, esse que recentemente, Henry descobriu se chamar Damien.

Aconteceu na última semana: Henry estava sentado perto da janela, escrevendo o sexto capítulo do que viria ser seu livro, quando ouviu uma das garçonetes chamar pelo rapaz. 

Era estranho, pois foi a primeira vez que parou para pensar sobre a vida do garoto desconhecido com o olhar triste. Foi a primeira vez que Henry o viu como uma pessoa de verdade, que fazia parte do mundo real e não da ficção que criou.

A inspiração, com isso, apareceu na potência máxima...

Até aquele dia.

Depois da mensagem, Henry se viu completamente devastado por um bloqueio que parecia incapaz de abandona-lo.

Constatou isso quando sequer saiu de casa e passou todas as horas variando entre a televisão, os videogames e a vontade de distrair a mente com qualquer coisa que exigisse apenas a lógica... algo que o tirasse do mundo, e que diferente da escrita, não o obrigasse a pensar sobre a realidade que o cercava.

Não falou sobre a mensagem com John e muito menos com Jennifer. Preferiu manter aquela memória do passado apenas para ele, poupando assim, sua família da ideia de reviver um problema que estavam tentando matar.

 Preferiu manter aquela memória do passado apenas para ele, poupando assim, sua família da ideia de reviver um problema que estavam tentando matar

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Naquele dia, Henry não apareceu no Green Coffee pela primeira vez em três semanas. Seu foco se perdeu diante à confusão que o deixou nervoso durante o dia inteiro.

Embora ninguém tenha dado muita atenção a ausência do rapaz estranho, Damien percebeu. De todos ali, ele era o que se sentia mais interessado pela situação do escritor nova-iorquino perdido no meio da tranquilidade do interior.

Durante toda jornada de trabalho, Damian imaginou que o escritor apareceria de última hora e naquele momento, enquanto caminhava para casa no início da noite, o rapaz tentava enumerar motivos para Henry ir todos os dias até o café, ao invés de ficar em casa, perto de suas próprias coisas e cercado por seu próprio mundo. 

Não conseguia entender a mente de alguém como Henry. Assim como não conseguia entender porque alguém criava um hábito e depois o desfazia de uma hora para outra.

Havia uma intuição forte lhe dizendo que algo estava muito errado no meio de tudo aquilo, porém não conseguia compreender o que era. De certa forma, julgava uma perda de tempo pensar demais na excentricidade dos outros quando tinha seus próprios problemas para resolver.

Damien preferiu simplesmente cortar aquilo de sua mente por não julgar muito útil, não quando Lucy o esperava em casa, não quando ele se sentia exausto dentro de seu próprio ser.

Mandy estava certa: por mais que não gostasse de admitir, era difícil se ver responsável por uma criança; era difícil cuidar de uma casa e balancear todas as contas sem mexer no seguro de vida que seus pais deixaram e nem em seu fundo de faculdade  (que se tornou o fundo de faculdade de Lucy).

As questões financeiras, o cansaço físico e mental... todas as consequências de se tornar  adulto cedo demais. Deveria estar terminando sua faculdade e recém procurando seu primeiro emprego.

Damien não podia imaginar,que o que julgava ser seu futuro estava prestes a mudar. E tudo começaria na tarde seguinte.

Coração de Porcelana.Onde histórias criam vida. Descubra agora