Ver o rosto familiar de Damien causou em Henry uma alívio inesperado diante a crise de ansiedade que o dominara durante todo o caminho até ali. Apesar dos dias sem trocar palavras, o mais velho parecia receptivo, disposto a atender o visitante e dar a ele o conforto por alguns momentos, como se a distância entre o último encontro e aquele momento nunca tivesse existido.
– Está tudo bem, Henry - ele disse com a voz sonolenta, afastando-se um pouco da entrada para dar passagem ao rapaz que trazia todas as marcas daquela noite estranha em seu rosto.
Assim que Henry passou por ele, Damien fechou a porta e o convidou para ir até a cozinha, para que bebessem alguma coisa quente e pudessem conversar. Ele se sentia um tanto culpado por não ter falado com Henry devido a confusão que armara em sua cabeça naqueles últimos dias, era uma medida drástica demais, egoísta demais, em nenhum momento pensara que o rapaz pelo qual nutria tanto apresso se veria sozinho, em nenhum momento pensara na amizade que tinham e simplesmente quisera emudecer os pensamentos que considerava impróprios em sua cabeça.
Mas agora... Diante a figura acabada de Henry ele só conseguia pensar no quanto havia agido como um idiota. Como podia ter simplesmente o ignorado em nome de algo que ele estava sentindo? Como não pensou no que isso poderia causar ao outro?
Henry ocupou seu lugar na bancada e agradeceu a Damien por recebe-lo aquela hora da noite, mas depois disso se restringiu ao silêncio incomum, tal como os ares tristes que o tomavam por inteiro naquela noite tumultuosa. Naquele momento, Damien abandonou a ideia de preparar algo para beber, percebendo que não poderia adiar por mais tempo a conversa.
– O que houve? -perguntou pacienciosamente o anfitrião, após ouvir os agradecimentos do convidado que estava lá, quase apático, sentado com os olhos vermelhos focados nas mãos deixadas sobre a superfície.
– Você já sentiu como se fosse desaparecer em si mesmo? - Henry perguntou sério, encolhendo os ombros como se encenasse o que estava falando. Henry às vezes tinha aquela mania de falar com metáforas, pois em algumas situações, apenas elas eram capazes de exprimir toda a subjetividade de situações que aos olhos das pessoas poderiam parecer quase banais.
Damien não respondeu, ainda tentando entender todos os significados por trás daquela pergunta, tentando resgatar de alguma forma, o que estava acontecendo para Henry telefonar desesperado no meio da noite.
– É difícil explicar - continuou falando mais baixo e tentando organizar as palavras em sua mente - Começou hoje a tarde... Os meus pais, eles... - suspirou pesadamente - Eu odeio gritos... Odeio quando as pessoas simplesmente perdem a capacidade de conversar e passam a se atacar com palavras... Além do mais, eles disseram que isso... Que o que aconteceu tinha ficado no passado, eles fingem que não existe problema nenhum, mas... Tem sempre uma quarta pessoa sentada na nossa mesa de jantar, e não é nem a mãe de Charles, a quarta pessoa é a situação em si, sempre lá, silenciosa e ao mesmo tempo gritando as coisas que ninguém quer dizer enquanto fingimos que está tudo bem.
– Eles estavam brigando, é isso? - Damien disse tentando confirmar alguma coisa naquela torrente de palavras confusas que pareciam mais direcionadas ao próprio Henry do que para ele, no entanto ouvia, porque sabia que as vezes tudo o que as pessoas precisam é falar e serem ouvidas por alguém.
– Não é pela briga em si... Eu já ouvi eles brigando uma centena de vezes e não saí de casa por causa disso, é mais complexo, é como se o que estivesse acontecendo me expulsasse. Eu li em algum lugar, uma vez, a história de alguém caminhando por uma rua, com expectativas altas do que encontraria quando finalmente chegasse ao seu destino e no caminho, o personagem acabava passando por coisas desastrosas, mas continua caminhando em direção a onde queria chegar sempre mantendo a esperança de que quando enfim se visse em seu objetivo tudo vai ficar bem, mas quando ele finalmente chega, percebe que todas as coisas que ele fez e passou para chegar ali foram em vão - Henry mantinha seu tom de voz baixo, enquanto simplesmente falava, sem deixar nada escapar de sua mente, simplesmente colocava para fora o que geralmente reservava ao seu caderno de anotações - É assim que as coisas funcionam, você acha que tudo vai acabar bem, que todas as coisas ruins que acontecem no meio do caminho são só dificuldades que serão resolvidas... Mas ao invés de chegar onde você quer, só aparece uma nova situação para você dar um jeito e no fim das contas, ninguém tem um final feliz.
– A vida é assim, Henry - Damien disse retribuindo o tom de voz mais moderado, enquanto o olhava nos olhos, enfim conseguindo entender os motivos do outro.
Henry possuía uma sensibilidade rara, um jeito de ver o mundo diferente dos demais, percebia as coisas de forma mais intensa e isso nem sempre era um ponto positivo, seus exageros as vezes o levavam as crises de ansiedade, aos devaneios melancólicos e a situações como aquela, que era na verdade um misto de tudo.
– Eu sei... a vida é assim, e eu só gostaria que meus pais parassem de fingir que não é, eu queria poder dizer tudo para eles, queria poder conversar com eles do jeito que falo com você, sem mentir, sem desviar assuntos, sem ter medo - Henry, cansado, se debruçou sobre a bancada e fechou os olhos, tentando de alguma forma, simplesmente apagar a força que o mundo externo exercia sobre ele - Acho que não adianta de nada dizer que um problema está no passado, quando ele ainda existe - Henry afirmou, repetindo a ideia exposta um pouco antes, como se quisesse confirmar seu ponto de vista.
– As vezes as pessoas só querem fingir que as coisas difíceis não existem porque isso deixa tudo mais leves momentaneamente. - Damien sabia, pois fazia isso o tempo inteiro, sempre tentava fingir que estava tudo bem, tentava mascarar todo o tipo de sentimento que fugia do que ele podia compreender.
E era exatamente por isso que não respondera as mensagens de Henry durante a semana.
– Mas existe uma margem saudável para se manter nessa alienação, Damien.
– Tem coisas que não somos capazes de resolver da forma mais fácil - respondeu paciencioso, não sabia dar conselhos, isso era verdade, era difícil para ele estruturar algum plano que parecesse resolver todos os problemas, mas estava tentando, porque a melancolia de Henry o afetava de uma forma que ele não conseguia explicar - Eu odeio ver você assim - confessou, sem pensar muito no que dizia, falando de forma quase instintiva - Henry....
O mais novo ergueu os olhos e encarou o rapaz diante de si com surpresa e ao mesmo tempo com gratidão. Ele parecia se importar de verdade, o que deixava o escritor mais confortável ainda, sentindo aquela sensação de que a cumplicidade que existia entre eles, já era forte o suficiente para ser considerada como algo inédito, afinal, haviam se encontrado há tão pouco tempo, no entanto, já se conheciam bem a ponto de não haver mais uma barreira casual, tudo fluía muito bem e estar na casa dos Collins já não trazia mais um desconforto inicial, a figura do amigo já era capaz de suplantar todas as inseguranças.
– Obrigado, Damien... - Henry disse, ainda com a voz fraca.
Diante aquele fim, depois de ter ouvido tudo o que Henry tinha para dizer, Damien se levantou da bancada, fez a volta, até estar atrás do amigo. Pousou a mão sobre o ombro dele, o que fez com que os olhos do mais novo se direcionassem a Damien que tentou anima-lo com um sorriso, ele pretendia distraí-lo um pouco, era o máximo que achava que podia fazer diante da situação.
– Vem comigo, eu quero te mostrar alguma coisa.
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Coração de Porcelana.
Storie d'amoreQuando a família do aspirante a escritor, Henry Lockwood sai de uma das maiores cidades do mundo e vai morar na provinciana Greenville, o rapaz se vê obrigado a adaptar-se ao ambiente pacato demais para alguém acostumado a correria e o caos. Ele ima...