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 Jesus sempre acordava cedo. Tinha algum instinto de interior dentro dele, apesar de viver e se comportar como um boêmio urbano da década de 20. Por algum motivo ainda não revelado pela ciência, o jovem estudante nunca havia sofrido de ressaca na sua vida. Esse é o meu segredo, eu vivo de ressaca — brincou uma vez quando Max comentou sobre seu "dom" especial. Naquele Domingo não tinha sido diferente. Após passar a noite anterior bebendo uma quantidade brutal de álcool, acordou as 6 da manhã como se nada tivesse acontecido. Nem uma leve dor de cabeça.

Ao seu lado, como de costume aos finais de semana, uma moça negra e bonita, cujo nome jamais se lembraria, dormia calmamente. Boa muleque — pensou assim que conferiu seu corpo escultural embaixo do cobertor. Ele não lembrava bem como aconteceu, mas tinha certeza de que haviam transado. Preferiu não acordar a bela companhia.

Ainda pelado, foi até a sala e ligou a televisão. Viu, pela porta da varanda, que o dia seria bonito e os primeiros raios de sol já começavam a pintar o firmamento de azul. Nem ligou de fechar as cortinas de blackout que o protegeriam dos olhares dos vizinhos. Eles já tinham visto tanta coisa. A tela mostrava uma propaganda de chocolate kinder, com sua camada especial de leite e sabor incomparável. Jesus era louco por doces e ficava aguado de desejo com a simples menção da palavra "açúcar" em alguma conversa. Vou comprar esse chocolate do capeta. Lembrou imediatamente da garrafinha de mel que Pedro deixara na geladeira. Era pra alguma receita que faria pra namorada. Uma boiolice dessas.

As regras do Covil foram criadas para que Jesus, Pedro e Biscoito pudessem conviver harmoniosamente naquele apartamento, sem se matarem. Dentre elas, a de não consumir itens, principalmente os alimentares, do colega era uma das mais importantes e cobradas. A única forma de cometer uma inflação pior seria ter relações sexuais na cama alheia. Jesus pensou nas implicações por alguns segundos, enquanto mantinha a porta da geladeira aberta e olhava para a garrafinha em formato de urso.

— Foda-se — Pegou o recipiente, prometendo a si mesmo repor antes que Pedro descobrisse.

Se jogou no sofá de courino branco que ficava em frente a TV e ficou deitado, despejando o mel diretamente em sua goela, degustando ininterruptamente aquele sabor diretamente da garrafa, como se fosse uma mamadeira. A mão direita acariciava a região escrotal, quase que instintivamente. Seria uma cena até comum se o Padre Marcelo Rossi não estivesse celebrando a Santa Missa na televisão a sua frente.

Continuou ali por infinitos segundos, num ritmo quase sincronizado: sorvendo aquele néctar, acariciando o saco e assistindo a Missa matinal. Quase não percebeu quando a música do Plantão da Rede Globo interrompeu a programação para uma de suas notícias urgentes. A essa hora? - pensou, sem se mover um centímetro.

Uma repórter de rua apareceu, meio desconcertada, a frente do que parecia um bloqueio policial:

— Nessa madrugada de sábado para Domingo, o prédio do Instituto Nacional de Oncologia e Pesquisas, no centro do Rio de Janeiro, foi isolado pela Polícia Federal, no que parece ser uma quarentena. Um vídeo que está circulando na internet, que mostra pacientes, aparentemente, se atacando, sugere algum tipo de ameaça biológica. O chefe da equipe antiterrorismo da Polícia Federal, o Inspetor Newton Araújo, já chegou ao local, mas não quis dar entrevista.— a mulher se virou e a câmera abriu, mostrando mais do local, com dezenas de policiais — Um forte bloqueio em todo o quarteirão da Praça dos Ex-Combatentes, impede a entrada da nossa equipe e de outras emissoras. O espaço aéreo também foi interditado....

Jesus acompanhava aquilo tudo com os olhos arregalados, quando, de repente, uma quantidade significativa de mel bloqueou a sua respiração. Estava engasgando. Tentava desesperadamente respirar, mas a cada puxada de ar que empreendia, seus pulmões doíam mais. Levantou-se e começou a bater em seu próprio peito, na tentativa desesperada de se livrar daquele tormento. Sua visão já estava turva e a mente inebriada pela falta de oxigênio. Não tinha mais força pra tentar tossir. Caiu de joelhos, rendido à iminência da morte. Tudo escureceu por alguns segundos. Numa última descarga de adrenalina, levantou-se com as duas mãos na garganta, como se a força que por acaso fizesse contra o próprio pescoço fosse lhe salvar a vida de alguma forma. Não iria. As 6:32 daquela manhã de Domingo, Jesus caiu inconsciente no chão da sala do seu apartamento. 

 

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QUARENTENA - Breve Ensaio de uma Noite InterminávelOnde histórias criam vida. Descubra agora