Peste

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Foi difícil me manter lúcido após os eventos das últimas horas. Primeiro a Carla e depois o Olívio. Será que eu estava me tornando um assassino? Uma dor de cabeça pulsátil me lembrava a cada instante que eu poderia estar infectado. A dor na barriga também não ajudava em nada. Será que a porta da entrada, no térreo também havia sido trancada, assim como as janelas? Claro que sim. Aquilo era uma quarentena, eu tinha certeza. Parecia que eu estava preso num conto de Edgar Allan Poe: os monstros estavam lá fora, mas eu sequer podia ficar escondido até que me encontrassem, pois a doença estava me corroendo e eu tinha que fazer algo quanto a isso.

Carol me disse, entre as crises vômito que começou a ter nas últimas horas, que o posto de enfermagem de cada andar costumava ter diversas medicações e talvez encontrássemos antirretrovirais e inibidores de proteases em um deles. Como não havia pacientes com HIV no andar que ela estava responsável nem no meu, restavam os postos do sexto e do oitavo andar. Eu tinha quase certeza de que não acharíamos nada, mas o plano era o único que tínhamos. Eu estava morrendo de medo de sair daquela sala. Consegui soltar duas barras de alumínio, de mais ou menos 1 metro, da parte de baixo das camas. Usaríamos como armas se precisássemos. E eu queria muito que não fosse preciso.

—Não tem ninguém —Carol me avisou assim que olhou pela porta entreaberta que dava pro corredor principal. —E o carrinho ainda está no lugar em que você deixou.

—Aqui também está tranquilo —respondi antes de fechar a porta em frente ao estar médico.

Saímos lentamente para o corredor principal. Cada um com a sua barra de ferro nas mãos. Meu coração pulava dentro de mim. A dor de cabeça já estava insuportável. Se eu achasse um comprimido de Dipirona, aquele perigo já teria valido a pena. Seguimos para a porta da enfermaria 8, por onde passamos vagarosamente para não chamar atenção de algum ser macabro que por acaso estivesse ali dentro. O quarto grande, com 6 leitos, tinha apenas 2 pacientes naquele plantão, que, pro nosso alívio, permaneciam deitados em suas camas. Um senhor de 80 anos, inconsciente e com um tubo orotraqueal enfiado em sua boca, e um homem de 50 e poucos anos em coma por conta de uma metástase cerebral violenta. Eram o que chamávamos de morredores: pacientes que parariam a qualquer momento durante a madrugada. O monitor do idoso mostrava uma pressão bem baixa, 70 por 50. Carol mexeu na bomba e aumentou um pouco da Noradrenalina para estabilizar e dar mais conforto ao velho. Eu não faria nada daquilo, o cara estava praticamente morto, mas não reclamei da atitude dela.

Chegamos ao posto de enfermagem e, de cara, achei uns comprimidos de Paracetamol na bancada. Virei dois pela goela e ofereci para Carol, que aceitou apenas um. O postinho era onde as enfermeiras preparavam as medicações que seriam administradas nos pacientes. Também servia como um pequeno depósito, para que não tivessem que descer para a Farmácia, lá no quarto andar, toda vez que precisassem de algum material ou remédio. O Plano B era visitar a Farmácia, mas eu queria muito que o A funcionasse.

—Merda —murmurei em voz baixa enquanto vasculhava os armários de medicações —acho que não vai rolar nada aqui. Esses caras não tem HIV.

Carol permaneceu quieta enquanto procurava algo útil nas gavetas de baixo. Me veio a ideia de proteger os antebraços com ataduras, como se fossem uma espécie de armadura. Peguei algumas caixas de papelão e comecei a cortar faixas que reforçariam a parte externa do braço. Como esses treinadores de cães que vemos na televisão. A garota continuou procurando, mas eu sabia que era em vão. Subiríamos pro oitavo andar e eu queria ter algo entre uma mordida e a minha pele. Só ali que eu percebi que ainda estávamos de jaleco.

Após proteger a mim e à colega com bastante gases, papelão e esparadrapos, estávamos prontos pra subir ao oitavo andar. Parecíamos dois samurais com armaduras nos antebraços e ataduras nos pescoços. Chegamos a discutir por alguns minutos se não seria mais fácil ir direto para a farmácia, no quarto andar, mas concordamos que aqueles zumbis que me perseguiram poderiam estar lá em baixo em qualquer lugar. O plano era basicamente entrar no posto de enfermagem, que no sétimo e oitavos andares ficavam quase ao lado das escadas, pegar as medicações e sair dali sem sermos vistos. Se não encontrássemos nada, desceríamos direto para o plano B.

QUARENTENA - Breve Ensaio de uma Noite InterminávelOnde histórias criam vida. Descubra agora