Tragédia Anunciada

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Os passageiros da linha 356, ônibus parador que partia da praça XV, no centro do Rio, com destino ao Terminal Rodoviário João Goulart, em Niterói, já estavam bem acostumados com o jeito calmo e alegre de Aldemir, o motorista da Viação Águia que dirigia naquele trajeto há quase 10 anos. Apesar de alguns acharem que o homem de 46 anos e pele morena, poderia acelerar um pouco mais de vez em quando, seria extremamente difícil encontrar algum passageiro que não gostasse dele. Contudo, naquela manhã, algo estava diferente. Não cumprimentou cada pessoa pelo nome, a medida em que subiam no veículo, como costumava fazer. Sequer deu a tradicional descida no ponto em frente à antiga estação Leopoldina, última parada antes de subir a Ponte Rio-Niterói, para comprar o delicioso cafezinho da Dona Zefinha, uma ambulante conhecida na região.

Ao contrário de como costumava se comportar, Aldemir estava pilotando com mais pressa do que o normal. Parecia nervoso e chegou a passar direto em alguns pontos onde havia, claramente, passageiros fazendo sinal. Subiu a ponte em disparada, como se estivesse numa corrida importante, acelerando o motor do velho Mercedes Benz até ele gritar para que passasse a marcha e aliviasse seu sofrimento. Tinha algo de errado com ele. Um casal de idosos que ocupava a poltrona alta, bem na frente do carro, apertava a mão um do outro, com muita força, enquanto trocavam olhares assustados. Os outros 15 passageiros também compartilhavam da mesma tensão.

O trânsito costumava ser bom naquele sentido, pois como Niterói servia de dormitório para a maioria das pessoas, era mais comum que o fluxo fosse mais intenso apenas no final da tarde, quando estas voltavam dos seus empregos para as suas casas. Com poucos carros na pista, o ônibus não demorou pra atingir os 120 Km/h. Era o mais rápido que qualquer passageiro já havia visto Aldemir dirigir. Também não demorou para que todos sentissem o cheiro forte de fezes dentro do veículo, que agora estava completamente fechado, após a recente instalação do tão aguardado ar-condicionado. Uma mulher gorda, de pele rosada e roupas claras bem largas, que sentava quase na metade do ônibus, decidiu se aproximar do condutor:

— Seu Aldemir — tocou em seu ombro direito enquanto ainda dirigia. Não conseguiu disfarçar o nojo ao ver que suas calças marrons estavam molhadas do que parecia ser fezes — O senhor está se sentindo bem? — Não obteve uma resposta. O homem continuava compenetrado em sua condução.

A mulher tentou se aproximar o suficiente para ver o seu rosto, mas seu tamanho avantajado não permitiu que ela coubesse entre o banco do motorista e o capuz do motor. Deu a volta e desceu um degrau da escada dianteira, o que finalmente revelou parte do rosto sério daquele homem que a levava todos os dias para o trabalho. Não estava acostumada a vê-lo daquela forma. Ninguém estava. A carranca era de alguém que sofria.

— Seu Aldemir — acenou com a mão direita pra ver se chamava a atenção do homem — fala comigo — levantou a voz estridente.

O condutor virou o rosto para a mulher que lhe importunava. Ela pode ver em sua expressão que o homem parecia não ter gostado da sua atitude. Seus olhos estavam vermelhos, como se sangrassem. Certamente estava doente. Tadinho, deve ser alguma virose que cause conjuntivite e diarréia. A mulher, que era técnica de enfermagem, pensou enquanto o encarava com um olhar misto de compaixão e nojo. Não teve tempo de dizer mais nada. O casal de velhos gritou em seus bancos, ambos apontando pra frente, e tudo começou a girar ... girar ... girar...  



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QUARENTENA - Breve Ensaio de uma Noite InterminávelOnde histórias criam vida. Descubra agora