Ar. Uma coisa tão importante e necessária, mas que acabou por se transformar em corriqueira. Só se pensa no ar quando ele, abruptamente, abandona os seus pulmões. Max jamais imaginou que algo tão disponível no ambiente lhe fosse faltar em plena flor da juventude. Nem mesmo quando estava correndo de zumbis ou na luta contra aquela espiã assassina, ele receava, ou imaginava, perder tal substância mágica. Cogitou que morreria, é claro, de diversas formas, exceto sufocado.
Naquela manhã de sexta feira, após digladiar bravamente com dezenas de criaturas canibais que queriam devorar as poucas pessoas com quem realmente se importava na vida, o jovem foi surpreendido por uma onda de calor. Um estrondo infernal que o arremessou longe. Só lembrava de ter apagado. Sonhou com o universo. Voou por entre supernovas e contornou a lua mais distante de saturno, antes de ser arremessado em uma completa escuridão. Era impressionante como uma escuridão podia ser mais escura que a outra. Tudo ia ficando cada vez mais negro, mais fechado e mais claustrofóbico. O que começou como uma queda livre no espaço, agora não era mais o universo. Era algo ruim lhe comprimindo e limitando os movimentos.
Tudo estava tão insuportavelmente apertado e escuro, que sentiu vontade de deixar de existir. Sabia o que deveria fazer. Bastava fechar os olhos e se entregar aquela negritude extrema. Bastava desistir. Acho que é isso. Pensou antes de fechar bem os olhos.
No entanto, ao contrário do que imaginou que aconteceria, Max viu uma luz forte, que o puxou abruptamente e lhe deu um prazer insano, como num orgasmo. Melhor. Como mil orgasmos articulados e orquestrados por fadas aladas e discos voadores multicoloridos. Era muito bom. A sensação durou um milhão de anos em pouquíssimos milésimos de segundo. A luz foi se dissipando e deu lugar às faces de seu pai e de Jesus, o amigo, não o metafísico, que sorriam bobos, enquanto encaravam o rosto de Max.
O jovem tentou se levantar, mas sentiu uma dor imensa no peito.
— Fica deitado — Jesus apoiou a mão no ombro do amigo, fazendo-o permanecer no chão — você teve um pneumotórax. Eu improvisei um curativo, mas você precisa de um dreno. E eu não sei mais o que deve estar escangalhado aí dentro de você.
— Filho — Álvaro interrompeu. Seus olhos estavam brilhando, como se tivesse chorado — Eu achei que você... — fechou os olhos e tomou fôlego para continuar a falar — Eu pensei que te perderia.
— Não foi dessa vez — respondeu esboçando um sorriso. Seu pai fechou o rosto numa carranca de preocupação, mas ele já não olhava pro filho.
O policial sacou a arma e desferiu 3 tiros na direção de algo que o jovem não conseguia ver. Max se levantou, mesmo sentido uma dor angustiante, e viu o que estava acontecendo: Estavam cercados por zumbis. E Camila estava no meio daquela bagunça também. Como ela veio parar aqui?
— Eu achei que você estivesse morto — a garota falou assim que se aproximou correndo.
— O que você tá fazendo ... — foi interrompido por um beijo.
— Depois falamos — Camila respondeu assim que se assustou com mais um tiro da arma de Álvaro.
Max contemplou a situação. Mais de 20 criaturas a espreita. Apenas esperando momento certo para atacar. Posicionando-se entre os carros e estudando suas vítimas. Agora já não pareciam mais tão ferozes, mas, de algum jeito, estavam mais perigosas. Sorrateiras.
— Pai — Max falou baixo no ouvido de Álvaro — nós todos morreremos aqui.
— Que isso? — atirou na direção de mais um zumbi, que conseguiu escapar para trás de uma SUV prateada.
— Vai pro carro com a Camila e o Jesus. Tranca a porta e só abre se eu mandar.
— Você tá doido? — o policial respondeu sem olhar pro filho. — Não vou te deixar aqui. Você nem se aguenta em pé.
Max agarrou o pai pelo colarinho com tanta força que ele chegou a largar a pistola no chão:
— Vai pro carro agora. Não discute dessa vez. Só dessa vez, deixa eu fazer as coisas do meu jeito. — as palavras saíram tão sinceras e verdadeiras que Álvaro não retrucou. Já tinha tido uma amostra do que o seu filho era capaz. Assentiu com um ar assustado. Não sabia por que, mas o garoto resolveria tudo.
— É o último pente — entregou a pistola na mão do filho e caminhou de volta para o gol preto. — é só mirar e apertar o gatilho. Deve ter mais uns dez tiros.
Max observou enquanto os três entravam no carro e trancavam as portas. Depois disso, o jovem se virou para onde estavam as criaturas e caminhou em direção a elas. Apenas caminhou. A visão começava a ficar vermelha. Uma queimação no peito se intensificava a medida que se aproximava. A primeira saltou, seguida da segunda e da terceira. As três foram alvejadas com tiros rápidos e certeiros na cabeça. A última caiu aos pés de Max e teve o seu crânio esmagado numa pisada. Isso é um teste, pensou com a arma ainda empunhada. Mais quatro pularam de várias direções quase em sincronia. Acertou mais dois tiros nas que vinham da frente, deu um chute forte, de sola, na barriga da mulher que vinha pela direita, jogando-a longe, e se virou a tempo de encaixar o cano da arma na boca aberta do zumbi gordo que vinha por trás. Ajeitou a arma no ângulo que queria e estourou a cabeça do desgraçado. A bala que atravessou o crânio acertou o olho de uma quinta besta que já se aproximava. Tudo isso aconteceu em menos de 5 segundos.
Mais dois tiros e a munição acabou. Jogou a arma contra o rosto de um dos seus atacantes e o cano ficou cravado no que um dia foi uma fossa nasal. Max já havia entendido o que estava acontecendo. Caminhou até outra das criaturas abatidas e, com um único movimento, agarrou-a, levanto-a pelo pescoço até suas pernas ficarem suspensas no alto. Os zumbis olhavam fixados para o que ele faria. O jovem apertou o pescoço do que um dia foi uma adolescente loira de uns 13 anos e, com a ajuda da outra mão, separou a cabeça do resto do corpo. Uma onda de urros e gritos começaram a ecoar. Vinham de toda a extensão da Ponte. De alguma forma, o jovem sabia qual era o próximo passo:
— AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH — gritou tão alto e forte que, certamente, alguém a quilômetros de distância poderia escutar. Era um berro de libertação. Um berro de posicionamento. Um berro de um Alfa.
Tudo ficou quieto. As criaturas se afastavam aos poucos. Os pensamentos de Max estavam turvos. Era difícil raciocinar após todo aquele esforço sobrenatural que acabara de fazer. Precisava descansar e comer. Aliás, estava com uma fome tão absurda, que nunca sentira antes. Poderia comer um frango inteiro.— sorriu ao pensar nisso.
Ao se aproximar do carro, viu que todos estavam lá, como havia pedido. A medida que caminhava, percebeu que os rostos estavam aterrorizados. Max olhou pra trás, pra ver se alguma criatura vinha por trás, mas nada. Elas haviam ido embora. Só quando chegou perto o bastante, pôde enxergar o seu reflexo no vidro: seus olhos sangravam e estavam vermelhos, tal como os das bestas infernais que acabara de matar. Olhou bem para a face de Camila, atrás do reflexo. Era puro terror. A fome aumentou. Voltou a ouvir tiros e um barulho de helicóptero se aproximando. Lutou contra a vontade louca de partir pra cima das vozes que ficavam mais altas a cada segundo. Estava acontecendo e só havia uma coisa a se fazer.
Naquela manhã de sexta, Maximiliano correu até a borda do Vão Central, porção mais alta da Ponte Rio-Niterói, e saltou para a morte. Ele não seria mais encontrado.
VOCÊ ESTÁ LENDO
QUARENTENA - Breve Ensaio de uma Noite Interminável
Science FictionDo outro lado do mundo, uma doença que transforma seres humanos em canibais ferozes percorre um sangrento caminho ao encontro do jovem Maximiliano, um brilhante estudante de medicina, que tenta sobreviver no limite da lei. Seria ele capaz de conter...