Queda

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 Eu subi pelas escadas para o sétimo andar a fim de checar se os equipamentos dos pacientes estavam funcionando corretamente, após o apagão. Apenas os refletores de emergência estavam funcionando. Só aquela iluminação alaranjada e esquisita permitia que eu visse alguma coisa. A Carol foi olhar os pacientes do quinto andar, enquanto o Caio ficou nas enfermarias do sexto. Olívio decidiu ficar no estar médico porque estava muito cansado. E ele realmente morreria se subisse ao oitavo andar pelas escadas (risos). Era muito gordo e sedentário.

Cheguei ao sétimo andar em alguns segundos, após 2 lances de escada acima, e a história era a mesma de antes: nenhuma alma viva nos corredores, mas eu percebi de longe o barulho do monitor da Larissa, uma paciente com pneumonia e câncer cerebral, que precisava ficar assistida o tempo todo. Uma onda de alívio tomou conta de mim, né. Pelo menos a paciente mais grave tinha Oxigênio pra passar a noite. O posto de enfermagem estava vazio, como sempre. Eu não estranhei tanto porque elas estavam em número reduzido mesmo. Deviam estar no Estar de Enfermagem, no quinto andar. Caminhei um pouco até encontrar a porta vermelha ao lado de um pequeno loft, com sofás brancos e uma mesinha de centro baixa. Os pacientes menos graves costumavam socializar ali em dias de sol, segundo Carol me contou. Adentrei a porta e já vi, de cara, a luz dos monitores funcionando. Dos 4 pacientes internados no andar, apenas 2 estavam no quarto. O que não seria estranho se os dois não fossem a menina Pietra e o Seu Urubatan, dois pacientes que dependiam de oxigênio até pra ir fazer cocô. Uma enfermeira de pijama azul, tipo esses de cirurgia,sabe? Estava debruçada em cima da Dona Edleuza. Devia estar fazendo algum procedimento,eu pensei. Tinha realmente mandado a enfermagem limpar bem a cânula da traqueostomia daquela mulher.

Estiquei o pescoço, procurando os outros doentes daquele quarto, e finalmente perguntei pra enfermeira:

—Você sabe da Pietra e do Seu Urubatan?

Ela permaneceu calada e ocupada no que estava fazendo.

—Oi? —insisti —Enfermeira —desta vez eu meio que gritei.

A mulher finalmente parou o que estava fazendo e eu, apesar da iluminação ruim, consegui ver sua silhueta melhor. Uma mulher negra, magra, de cabelos bem presos em um coque apertado. Aliás, eu conhecia aquela mulher muito bem. Era a técnica Carla, que trabalhava comigo no hospital Municipal de Belford Roxo. Eu realmente não sabia que ela trabalhava no INOP. Eu, na verdade, não sabia absolutamente nada sobre ela.

Sua face estava vazia e ela não parecia me reconhecer. As bochechas estavam sujas de algo escuro que vinha dos olhos. Seria sangue? Devia ser a maquiagem borrada. Carla vivia chorando a toa.

—Você está bem? —perguntei sem me aproximar —não sabia que você trabalhava aqui —completei com um sorriso no rosto. A mulher arregalou os olhos, cujas escleras estavam escuras, em uma face de pura raiva, que me deu medo na hora. Aquilo na boca era sangue? Minha adrenalina insistiu em se elevar. Senti um frio estranho na espinha. Meu corpo tinha certeza de que ela me atacaria. Mas o que era aquilo? É a Carla. Já havia dado plantão com ela depois que havíamos terminado. Não parecia furiosa comigo. Magoada, talvez, mas não com raiva a ponto de me atacar.

A enfermeira partiu pra cima de mim, pulando a cama do leito ao seu lado como se fosse o homem-aranha. Ela se aproximava e eu ainda não acreditava no que estava acontecendo. Sua face era totalmente diferente de tudo o que eu já havia visto. Definitivamente, não era a Carla que eu conhecia. Parecia um monstro, um zumbi, sei lá. Meio que por instinto, eu dei dois passos pra trás e agarrei o meu estetoscópio, sobre o meu pescoço, pela parte metálica com as olivas de ausculta. Seu rosto ficava mais nítido a medida em que se aproximava e meu medo era mais justificado ainda. Eu tinha que me defender, mesmo que aquilo parecesse ridículo. Girei o aparelho umas duas vezes e assim que ela se aproximou o suficiente e saltou com a boca aberta para me abocanhar, desferi um golpe certeiro com a parte mais pesada na lateral do seu rosto. Não chegou a ser um nocaute, mas me deu vantagem tática de me desviar, enquanto ela caia, atordoada, sobre o criado-mudo.

QUARENTENA - Breve Ensaio de uma Noite InterminávelOnde histórias criam vida. Descubra agora