Exatos 13 segundos se passaram antes de um sopro de fôlego invadir o pulmão daquele jovem rapaz. Um grito seco e rouco acompanhou aquela respiração milagrosa, que foi seguida de uma intensa crise de tosse. Jesus conseguia sentir o sabor doce do mel a cada tossida que dava. Era o gosto da vida de volta. A visão ainda estava turva, mas ia melhorando aos poucos, a medida em que respirava entre os acessos de tosse. Colocou-se de joelhos novamente e absorvia o oxigênio como se fosse uma dádiva que recebera. Permaneceu de joelhos por alguns minutos. Ficaria horas se não fosse o som da voz feminina atrás de sua cabeça:
— Jesus, você tá bem? — enxergou a garota que estava dormindo em sua cama, usando uma de suas blusas.
— Sim ... sim ... — respondeu ainda confuso — só estava vendo a missa.
A menina olhou com um ar de estranhamento e lhe entregou o aparelho celular, ainda tocando:
— Tá tocando direto.
— Obrigado princesa — pegou, ainda tonto, o aparelho e atendeu sem olhar o número — alô.
— Jesus? — uma voz feminina familiar, mas ainda desconhecida, falou no outro lado da linha — Você conseguiu falar com o Max?
— Quem está falando?
— Camila — a voz quase gritava — da Faculdade. Você conseguiu falar com o Max? Eu tô ligando pra ele e não atende.
— O telefone não vai funcionar naquele lugar — lembrou-se do dia anterior, em que tentara falar com o amigo e só conseguiu por chamada de vídeo — Só chamada de internet.
— Eu tentei tudo, mas não atende. — a garota parecia impaciente.
Jesus recordou de que aquela menina não deveria saber sobre o que o amigo fazia. Resolveu questionar:
— Porque você quer saber do Max? Que eu saiba vocês se odeiam.
O telefone ficou mudo por alguns segundos.
— Odeio — a menina começou a falar rápido — mas eu sei que ele anda fazendo esses plantões ilegais e fiquei preocupada com ele, assim como ficaria com qualquer ser humano.
— Ah ... Tá... — finalmente se levantou sem acreditar bem naquela desculpa — Eu vou tentar falar aqui com ele.
— Me avisa se conseguir — a voz estava quase suplicante — por favor?
— Claro.
O jovem estudante desligou sem entender direito o que havia acabado de acontecer. Só sabia que seu amigo devia estar em apuros e ele precisava fazer alguma coisa. No entanto, não poderia expor a condição de falso médico de Max. Newton Araújo. Será que ele tem facebook?
No sofá, a garota terminava de consumir o que restara da garrafinha, enquanto assistia o resto da missa. Um frio macabro correu a espinha de Jesus. Ele nunca mais comeria aquilo novamente.
Passou a manhã toda matutando sobre como poderia ajudar o amigo, mas a cada novo flash do caso que aparecia na TV suas esperanças se esvaiam. Já tinha sido montada uma estrutura de filme de ficção científica no local. Todas as emissoras só falavam do tal atentado. Um especialista em vídeo foi num programa sensacionalista e afirmou que se tratava de uma montagem. No outro canal, até entrevista com funcionários de folga eles foram capazes de fazer. Já eram 11 da manhã e Jesus não havia conseguido ligar pra nenhum dos telefones do hospital.
Sua manhã foi quase toda dedicada a vasculhar a vida do Inspetor Newton Araújo na internet. Pra sua sorte, Andressa, a menina com quem acabara de dormir, era aluna da Análise de Sistemas e sabia tudo sobre computadores. Só teve que pedir com jeito - transar mais uma vez - pra que ela o ajudasse com a pesquisa sem fazer muitas perguntas. É incrível como a vida das pessoas está exposta na rede. Em menos de 30 minutos descobriram o endereço, telefone e nome da mãe. Jesus tinha a impressão de que se a menina quisesse acharia até mesmo o número do cartão de crédito do cara. Os dois almoçaram uma lasanha de micro-ondas, que devia pertencer a algum dos outros moradores do Covil, e ela foi embora escutando as promessas de que se veriam novamente em breve, o que provavelmente era mentira.
Sentou-se, ainda nu, no sofá e começou a vasculhar as redes sociais pelo celular. Em sua mão esquerda queimava um baseado quase pela metade. Já se falava em apocalipse zumbi no Brasil. Um grupo de idiotas, que se denominavam vampiros paulistas, postou um vídeo "explicando" o que estava acontecendo. O estudante continuou passando, por um longo tempo, a sua timeline sem muito interesse até que a música do plantão da TV Globo chamou a sua atenção para a televisão.
A repórter de rua apareceu novamente e, desta vez, a expressão estava mais firme. Jesus puxou um trago longo antes dela começar a falar:
— Novas notícias sobre a quarentena do Instituto Nacional de Oncologia e Pesquisa, que já dura quase 14 horas. A equipe do BOPE entrou no prédio há cerca de 2 horas. Ouvimos tiros sendo disparados, mas já faz 20 minutos que nada é escutado. — A mulher parou por alguns segundos para ouvir o que falavam com ela no ponto eletrônico — Acabamos de receber duas imagens de nossa fonte interna. Tirem as crianças da sala, porque as imagens são fortes. — A tela mostrou o que parecia ser uma parede com uma marca de mão ensanguentada — segundo o nosso informante, abre aspas, essa é a parede mais limpa do hospital, fecha aspas — a imagem mudou e agora mostrava um corpo no chão. Uma equipe fazia algum tipo procedimento nele. O rosto não era visível, mas dava pra ver que vestia uma camiseta bem suja de sangue, calça jeans e sapatos de couro. — Essa foto mostra o único sobrevivente resgatado do que parece ser o maior atentado terrorista da história do Rio de Janeiro. Ele também é, segundo a nossa fonte, o principal suspeito...
Puta que pariu. Jesus começou uma nova crise de tosse. Nada parecida, ou mortal, com a que tivera naquela manhã. Apenas tragou errado, por causa do susto que levou. Conhecia aquele sapato. Sua mãe lhe dera de aniversário há 6 meses, mas nunca havia usado. Tinha emprestado ontem ao seu melhor amigo e agora ele estava muito enrascado.
Pensou por alguns segundos. Sabia que Max não era culpado, mas parecia que a polícia tinha certeza do contrário. Decidiu, finalmente, o que faria para ajudar o amigo. Não era, de longe, a melhor ideia do mundo, mas, naquele momento, parecia a melhor coisa a ser feita. Sentou-se em frente ao computador e abriu a página que Andressa lhe indicara antes de ir embora. Permitia criar um e-mail temporário, mascarado por um servidor internacional. Não necessitava sequer de um cadastro. Era só abrir, escolher o país de onde você gostaria que seu e-mail parecesse e enviar. Daria, inclusive, para receber mensagens durante 20 minutos e, após esse tempo, o endereço se destruiria automaticamente.
Digitou uma mensagem explicando tudo o que estava acontecendo e quem era o rapaz resgatado com vida. Exitou por alguns instantes, antes de apertar o enter. Não sabia qual era a desse policial, nem se era corrupto ou não. Teve uma ideia melhor. Max vai me matar. Pegou o seu celular e digitou um dos números que descobrira naquela pesquisa matinal:
– Alô. Seu Álvaro? – falou assim que o homem do outro lado atendeu – Você não me conhece, mas eu sou amigo do teu filho.
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QUARENTENA - Breve Ensaio de uma Noite Interminável
Science FictionDo outro lado do mundo, uma doença que transforma seres humanos em canibais ferozes percorre um sangrento caminho ao encontro do jovem Maximiliano, um brilhante estudante de medicina, que tenta sobreviver no limite da lei. Seria ele capaz de conter...