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Meus pais sempre diziam que queriam ter dois filhos... Meninos ou meninas, tanto fazia, mas que fossem do mesmo sexo para serem parceiros por toda a vida. Eles planejaram as datas para que as idades fossem próximas e apesar de naquele tempo não existirem aplicativos para deduzir o dia da fecundação para ser uma coisa ou outra e os tratamentos serem absurdamente caros, se apegaram a algumas simpatias para, pelo menos, poderem dizer que fizeram a parte deles... E deu certo.
Quer dizer... mais ou menos certo já que sou uma testemunha viva de que a teoria da conspiração deles não funcionou como eles arquitetaram e para mim resultou em uma tremenda emboscada. Meninas sim, amigas jamais.

Claro que eu não me lembro, mas já adulta, num daqueles almoços melancólicos da Semana Santa, meus pais, crentes de que eu havia superado toda a indiferença sofrida na infância, contaram entre altas gargalhadas um episódio que aconteceu quando eu tinha pouco mais do que um ano de idade. Nessa época, a do fatídico almoço, eu já estava morando em São Paulo e só aparecia na Bahia duas vezes por ano... quando eu ia. Eles disseram que eu estava dormindo no berço e a Sabrina tentou me afogar com um copo d'água. Enquanto eu fiquei horrorizada, muda e com meus imensos olhos enevoados, ela repetiu inúmeras vezes que não lembrava de ter feito nada parecido com aquilo e que era um absurdo contarem uma mentira daquelas na frente dos seus filhos pequenos, que podiam usar a "ideia" num momento de desatenção dela. Eles tinham dois e três anos e eram inquietos como ela, ao contrário do passivo pai, escolhido a dedo, que caiu na armadilha dela de casar com um cara rico e bobalhão. Não consegui proferir uma palavra, um gesto, nada...

Vinte anos se vaguearam pela minha cabeça em uma fração de minutos e mesmo diante de tudo o que passei, acho que essa foi a maior prova de que ela já nasceu com má índole e um coração peludo. Crianças não nascem éticas, boazinhas e cheias de virtudes. Na grande maioria das vezes elas cedem aos seus instintos e não tem acesso ao fator consciência, mas ela era ruim, agia de caso pensado e provava que não estava nas suas intenções, ser um ser humano do bem. Aliás, retiro o "peludo", já que amo gatos e odiaria ter que comparar meus bichanos àquela criatura sem alma e de coração funesto.

Fomos criadas exatamente da mesma forma e na frente dos meus pais ela me desprezava, porém, evitava me maltratar para se safar dos castigos aplicados com severidade, apesar de nunca perder a chance de fazê-lo assim que eles viravam as costas. Nem posso mentir e dizer que ela me batia, porque na realidade a gente não se encostava. Vivia demonstrando que sentia nojo de mim, me chamando de esquisitona e por umas cem vezes eu fui obrigada a morder as bochechas para não reagir e demonstrar o quanto aquele tratamento me magoava.

Eu era tão pequena, tão desprotegida e ao mesmo tempo tão forte... Nossa! Como suportei tudo aquilo sem jamais me queixar para ninguém? Sem correr para os braços do meu pai com lágrimas nos olhos implorando para que ela parasse? Meu pedido de socorro era mudo e doído.

Todas as recordações que tenho dela são sombrias.

Bonecas riscadas a caneta, chicletes colados em vestidos, cadernos escondidos para que eu não pudesse fazer os deveres de casa e mesmo com a constante vigilância dos meus pais, que não eram tolos, tive os meus cabelos cortados uma ou duas vezes e, quando eles perguntavam, eu respondia timidamente que eu mesma havia aprontado a arte e isso a deixava ainda mais fula comigo.

Apesar do rancor que guardei dela, nunca usei esse sentimento para dar o troco na mesma moeda.
Quer dizer... nunca diga nunca.

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⭐️

Como esse capítulo foi curtinho, até o fim-de-semana posto mais um!!
Bjos

Adeus, tempestadeOnde histórias criam vida. Descubra agora