TRINTA E NOVE

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Rhea


Com as pontas dos dedos, acariciei a caligrafia caprichada.

Meus olhos ardiam, as lágrimas insistindo em que eu as deixasse verter e seguir seu curso.

Eu não iria.

Entretanto, o baque de perceber que eu finalmente tinha em mãos uma prova concreta me mantinha no fio da navalha.

Porque até então, não havia nada além de suspeitas.

Porque até então, tudo o que eu segui fora a intuição, o rastro do coelho com um maldito relógio no colete.

Agora, no entanto, ali estava. O livro cujas páginas amareladas eu tão bem conhecia. A marca de uma orelha que eu mesma fizera numa das vezes em que o peguei escondida...

Era verdade, então. Eu não estava louca.

Ou, ao menos, possuía o tipo certo de loucura...


"Mas não quero me meter com gente louca", Alice observou.

"Oh! É inevitável", disse o Gato; "somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca."

"Como sabe que sou louca?", perguntou Alice.

"Só pode ser", respondeu o Gato, "ou não teria vindo parar aqui."*


Sim. O gato sempre tinha razão. Sarah mesmo o defendia em nossas conversas. E eu estava ali, não estava?

– Sarah – chamei num sussurro, como se ela pudesse me ouvir e juntar-se a mim.

Ela não poderia.

De repente, eu precisava tomar ar.

Cambaleei para fora do escritório, e então saí da cabana. Depois da chuva, o sol me recebeu com sua calidez constante. Eu o ignorei, assim como ignorei para onde meus pés me guiavam, e o quanto corri alucinadamente.

A dor e o ódio me tomaram com força total, um golpe certeiro no meu peito, abrindo-o de dentro para fora e rasgando um caminho de sangue que me encharcava inteira. Que me lembrava, que me assombrava.

E isso só me fez correr ainda mais rápido.

Rumei para o bosque aos fundos da cabana, um grito mudo em minha garganta e as recordações a me atravessarem. Minha cabeça era uma profusão de caos e saudades e arrependimentos, e estava prestes a explodir sobre meus ombros e dar fim à minha existência.

Era sempre assim quando eu estava lúcida e, ao mesmo tempo, nunca foi assim enquanto eu ainda não tinha provas.

Caí de joelhos, agarrada ao nosso livro, e estremeci em soluços convulsivos.

Não chorei. Nem sequer uma lágrima eu me permiti libertar.

Mas meu Deus, Sarah. Meu Deus.

Fiquei ali, lutando com meus demônios. Não sei quanto tempo se passou, ou se Wade já estava de volta. A brisa acariciava minha pele úmida de suor, e era só isso o que eu sentia agora.

O sussurro das sombras contra meu suor frio.

O gracejo das sombras sob as árvores densas.

E o tormento das sombras dentro de mim.

Pareceu levar uma eternidade até eu conseguir juntar os cacos do meu coração partido. E quando o fiz, ele continuou estranho dentro do meu peito, como se já não fizesse parte do meu corpo.

Rumei de volta à cabana sem mais olhar a capa do livro em minha mão. E quando refiz o meu caminho para lá, avistei o SUV de Wade na entrada.

A porta do veículo estava aberta, mas eu não conseguia vê-lo em seu interior.

Ele devia ter entrado na cabana para descarregar as compras, pensei, e quando não me encontrasse, acharia que eu fui embora.

Eu deveria ir. Deveria ir embora agora mesmo e concluir minha história com Clayton. Por Sarah. Por mim.

Por outro lado, segurava a prova que assegurava que eu sempre estive loucamente certa, e entendia finalmente que no fundo eu queria confiar em alguém e lhe contar tudo.

Apertando o livro no peito, caminhei até o SUV.

Até que uns braços me agarraram por trás e uma mão cobriu a minha boca.

– Olhe só onde estava a vadia...



* Trecho do livro Alice No País Das Maravilhas, de Lewis Carrol.


Bom... Depois de cenas tão quentes no início de Furor, não sei bem o que vocês irão pensar do que vem por aí. Para vocês verem que não é só o leitor que fica angustiado e roendo as unhas :/

Comentários, votos e adicionamentos nas listas de leitura são sempre bem-vindos, como vocês já sabem ;D

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