CINQUENTA E TRÊS

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Rhea


– A Sarah foi a pessoa mais fantástica que eu já conheci – comecei, permitindo que as lembranças viessem à minha mente. Eu estava de pé, com os braços cruzados, em frente à janela da sala. Assistia ao movimento dos carros lá embaixo na rua, que àquela hora era menor.

– Foi? – perguntou Wade, e meu silêncio foi resposta suficiente.

Eu sentia seus olhos fixos em mim, do sofá onde estava sentado. Ele havia tomado o banho e o café. Vestira um abrigo esportivo e me deu outro, insistindo que eu deveria usar roupas folgadas enquanto estivesse me recuperando. Tentou me levar ao hospital, mas eu não aceitei. Menti-lhe que já havia ido e sido medicada devidamente, e que os exames tinham mostrado que não havia nada quebrado.

Percebendo que eu estava perdida sobre como continuar, ele murmurou:

– Você a amava.

– Mais do que à minha própria vida – respondi, sentindo o aperto em meu peito e garganta.

– Eram amantes?

– Não. Nós eramos amigas. Ela foi a única pessoa que eu considerei como minha família de verdade. A irmã que eu nunca tive. Crescemos juntas, nossas casas eram uma ao lado da outra. Só que eu morava com meu pai bêbado e ela com os tios rigorosamente religiosos.

Eu nunca havia falado sobre Sarah com ninguém, muito menos sobre nossa infância. Também não ousava pensar sobre o que tínhamos antes de perder a minha amiga.

– Então você passava a maior parte do tempo na casa dela – Wade tentou adivinhar, de forma a me trazer para a conversa outra vez.

– Jamais! – Ri só de imaginar, o rancor se espalhando por meu peito. – Não, eles não aceitavam que andássemos juntas, eu era a filha de um bêbado com uma prostituta que me largou na porta dele e arruinou seu casamento. Além disso, reprovavam o comportamento de Sarah na maior parte do tempo, apesar de ela ser a mais sensata e certinha de nós duas. Apesar de dizerem que a culpa do que quer que fosse era toda minha. Nós nos encontrávamos às escondidas na pracinha no final da rua. Foi ela quem me apresentou às brincadeiras e aos livros. Livros que eram dos pais dela e que os tios teriam jogado fora se soubessem que ela ainda os guardava.

Eu me virei o suficiente para apontar para o livro sobre a mesinha e acrescentei:

– Alice No País das Maravilhas era o favorito de Sarah. Eu não sabia que o encontraria na cabana, porque aquela dedicatória simples foi escrita para mim há muito tempo. Deixei o livro com ela por medo de ser destruído em casa. Meu pai quebrava e destruía coisas desde antes de eu conhecê-lo.

– Sinto muito.

– Não sinta. Eu não sinto nada pelo que nunca tive.

– E você teve a Sarah.

Encarei-o, o entendimento brilhava em seu olhar.

– Exatamente. E a perdi quando ela arranjou um amante misterioso logo que entramos na faculdade. Ela não se sentia à vontade para falar dele comigo, e eu acredito que tenha sido pelas marcas que eu via em sua pele.

– Submeteu-se a um agressor.

– Não. Eram marcas nos pulsos, riscos vermelhos na pele. No dia em que ela me falou que ia largar a faculdade e alugar uma casa, usava um colar diferente, uma espécie de coleira, pelo que ela deixou escapar. Era algo caro e sofisticado que ela só poderia ter ganhado. Foi a nossa primeira briga.

– Você não aceitou bem.

– Não tinha nada contra o relacionamento dela, só contra as mudanças causadas por ele. Sarah havia experimentado prazer na dor e por mim tudo bem se ela fosse feliz assim. Só que ela não era. Ela tinha vergonha de tudo o que fazia com ele e se mostrava totalmente diferente, ora irritada ou na defensiva, sempre desconfiada, preferindo mentir do que se abrir sobre o que a deixava assim. Eu a conhecia bem, e tentei mostrar a ela que poderia se abrir comigo, mas ela optou por seguir com aquela merda que só lhe fazia mal. Uma paixão doentia que a fazia deixar a própria vida e sonhos para trás.

– Então ela abandonou a faculdade e saiu da casa dos tios.

– Sim. – Precisando de algo que me relaxasse, virei-me para o minibar e fiquei olhando para as garrafas. Quando nenhuma me chamou a atenção, desisti e fui à minha bolsa, ao lado de Wade no sofá. Peguei um cigarro e ele preferiu não comentar nada a respeito. Só o agarrou das minhas mãos instáveis junto com o isqueiro para acendê-lo para mim.

E então continuou a conversa:

– Foi quando você descobriu que o misterioso amante dela era o Clayton?

– Não, eu ainda não sabia nada sobre ele. E nós não nos falamos muito depois que ela parou de estudar e se mudou.

Observei o rosto sério de Wade através da fumaça. Ele me encarava e avaliava meu estado, concentrado em manter a chama do cigarro acesa.

Tive vontade de tirar o cigarro da sua boca e puxá-lo para mim. Beijá-lo e perder-me nele, deixar aquela conversa para trás.

Ela não mudaria o passado. O que estava feito, estava feito.

Mas se eu não continuasse, não teria Wade comigo. E eu precisava dele, pelo tempo que pudesse tê-lo.



Já vem mais um capítulo curto de comemoração, porque SOMBRAS está na posição 24 em Poesia! Obrigada, queridos! Beijo da Ary.

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