SETENTA E CINCO

6.3K 406 30
                                    

Rhea


"[...] Eu tenho a luz das estrelas

Eu tenho doces sonhos

Eu tenho o meu homem

Quem poderia pedir algo mais?"¹


Quando voltei à cozinha, procurei no meu smartphone a música que eu me vi cantarolando durante o banho. A voz de Ella Fitzgerald preencheu o ambiente, e eu continuei a trabalhar, cantando junto com ela no mesmo volume baixo e calmo.

Em frente ao fogão, ocupei-me de mexer o molho barbecue na panela. Nem percebi que balançava levemente o corpo no ritmo da música. Acrescentei duas doses de uísque da provisão de bebidas de Wade, de acordo com o que eu me lembrava da receita da mãe de Sarah, e a seguir a mistura de temperos que ela usava em outros tipos de molhos.

Sarah costumava dizer que iria todos os dias no meu futuro restaurante, só para comer da minha comida e relembrar a da própria mãe. Eu lhe disse que aquilo tinha de ser uma promessa, pois eu contaria com ela como degustadora oficial no meu grande e famoso restaurante.

Amor de Mãe. Esse era o nome que Sarah insistia que o lugar deveria ter. Eu dizia que seria estranho, porque a dona dele, no caso, eu, não era uma mãe. Ela balançava a cabeça e insistia que até lá eu tinha tempo de procurar alguém especial e seria sim uma mãe. Então olhávamos uma para a outra e ríamos das nossas conversas tolas.

Eram sonhos adolescentes, mas a verdade era que eu faria isso por ela. Mesmo sem filhos, e mesmo que ela já não pudesse mais cumprir a sua parte no acordo, eu manteria a sua memória, a da mãe que ela não teve tempo de ser e a da mãe que também não teve tempo de conhecer.

Amor de Mãe seria o nome do meu restaurante, não importava quando ele passasse de sonho a realidade.

Concentrada em cozinhar e perdendo-me em lembranças boas e na música, não ouvi o barulho da chave girando na fechadura, nem da porta se abrindo. Tampouco prestei atenção no som de passos que precedeu a voz de Wade no recinto:

– Voltou a confiscar as minhas camisas? – perguntou ele e, após o meu susto, notei sua confusão no tom daquelas simples palavras.

Olhei por sobre o ombro e lhe lancei um sorriso.

– Ainda não as tinha experimentado com uns saltos altos.

Ergui a perna, de modo que ele pudesse ver as minhas sandálias. A barra da camisa subiu e mostrou um pouco mais da minha perna nua.

Com calma, apreciando tudo o que via, Wade passou os olhos pelo meu rosto e corpo. E então ele deu a volta na ilha da cozinha e se aproximou por trás de mim.

Seus dedos seguraram a minha nuca, logo abaixo do coque frouxo que eu fizera para que o aroma da comida não impregnasse completamente no meu cabelo depois do banho.

Ele me olhava nos olhos, sério.

– Por que voltou a usar essa maquiagem pesada? Já não precisa mais dela.

– Você não gosta?

– Claro que gosto, mas isso não significa que você precisa voltar a se arrumar e se comportar do jeito que fazia antes.

Antes. Embora eu já conseguisse pensar no passado em que Sarah era viva, não tinha a mesma facilidade no que dizia respeito ao passado de vingança. Doía, apertava-me o peito. Deixava-me um gosto amargo na boca. Ainda assim, eu estava aprendendo a controlar melhor os sentimentos destrutivos.

FUROROnde histórias criam vida. Descubra agora