Capítulo 2 - A Chave

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Quem poderia duvidar da capacidade de Sonia? Quem podia insinuar que Sonia não era uma mulher digna? Áustralo, um Misterioso (ou Dirígelo) já falecido, sentia prazer em matar homens insolentes banhando suas vestes nos ácidos das Montanhas do Norte, provendo-lhes muita dor e sofrimento antes da corrosão de seus órgãos. Imporia o mesmo ao que dissesse algo infundado sobre Sonia, a Desertora.

Sonia era a mãe de Lankher, e tinha 41 anos. Era uma mulher muito conhecida, que não se parecia muito com seu filho. Desde o nascimento, todos já diziam que "o menino puxara ao pai", mesmo sem conhecer o indivíduo. Mesmo assim, sem semelhanças, todos sabiam que era filho dela. A mulher tinha respeito, por toda a cidade; todos a admiravam.

Os dois viviam em Render, uma cidadezinha dentro da grande Vint, ao lado de Rashat e Torn. Era perto dos castelos de Ozit e de Aimo, que eram bem próximos um ao outro. A cidade deveria ser rica, porém não era assim; com o reino sob controle de Rick, os alimentos haviam parado de ser transportados pelas cidades, sendo levados pelo mar (Vint, a cidade do reino, era o extremo Sul de Ozit). Assim, a crise teve espaço, pois Rick havia parado de alimentar o povo. O início de uma revolta terrível contra a tirania.

Se as pessoas vissem o lado do rei...

Sonia já fora guerreira de Ozit, grande e importante. Numa guerra contra Drome, chamada de A Tomada, muitos combatentes perderam-se no deserto de Chads, na fronteira com Ceroza; mas Sonia os ajudara, lhes providenciando alimento e uma caverna por duas semanas. Nenhum deles fora morto enquanto lutava ao seu lado.

Ela já havia participado de muitas guerras, e saíra viva de todas elas. Uma contradição aos métodos de Ozit, quebrando assim a preponderância masculina por vários anos. Mas havia abandonado seu posto após sofrer uma decepção com o rei: seu marido fora expulso do reino. Desde então ela andava um tanto sorrateira, invisível em meio aos pobres plebeus.

- Por que chegou mais cedo? - Sonia perguntou ao ver Lankher entrar em seu casebre, cabisbaixo, com as mãos feridas e calejadas.

- Não ia mais lutar - respondeu ele, sorumbático.

- Por que você sempre chega com as mãos machucadas?

Sua voz era doce e arrastada, como se ela sempre considerasse os abraços como opção de fuga.

- Porque luto, certo? A senhora deve saber como é - disse, ainda recusando-se a encará-la.

Ela afirmou, sorrindo.

- Vou para a praça, comprar milho. Fiquei sabendo que Rick finalmente começou a liberar um pouco de comida. Viria comigo?

Lankher olhou para os lados, como se aguardasse o consentimento das paredes, e forçou-se a sorrir.

- Claro, mamãe.

- Ótimo. Banhe-se antes, para que causemos boa impressão a todos. E veja se consegue fazer novos amigos!

- Sim, eu farei.

Lankher soou indiferente. Não se esforçaria para fazer amigos, mas Sonia não forçou o assunto. Lankher fora para outro cômodo da casa, incrivelmente pequeno. Deveria ser o banheiro. Aliás, tudo precisava ser pequeno, para caber dentro do pequeno espaço que todos de Render chamavam de casa.

Depois da higiene e algumas beliscadas nas frutas que sobejavam da noite passada, Sonia e Lankher saíram para comprar o milho. Mas Lankher saíra chateado; lendo tantos livros, sua mente abrira-se numa acidez crítica digna de um indivíduo senil, e ele não era tão ignorante a ponto de negar a grande desigualdade social que rodeava a todos. Mas, diante desse cruel esquema absolutista, qual seria sua opção? Teria ele, algum dia, uma voz?

Sonia, absorta em pensamentos menos conjuntivos, gostava de observar os pássaros: lindos e rápidos, com movimentos densos e aparência súpera sob o sol das 13 Instares (aproximadamente 12 horas, no Continente Norte). Eles eram lindos naquela Era, a Misteriosa.

Aliás, a nova Era fora marcada pela ascensão absoluta dos Misteriosos, após a criação dos Tronets. Ao todo eram seis Dirígelos, mas dois não sobreviveram à Era Maldita, e os outros criaram um certo despotismo sobre a Terra de Sombras, o nome da época dado aos quatro continentes. Mandavam indiretamente em tudo, realmente tudo. E, acima de tudo, nas pessoas.

Depois que os pássaros fizeram uma curva de 90º graus, Sonia acordara de seu torpor, que pelo visto fora longo; Lankher andava na frente, em direção a uma praça melancólica, daquelas que eram pintadas milhões de vezes, e sempre estavam identicamente fúnebres.

Andava sem emoção em direção a um balanço precário no centro do local. Várias crianças já brincavam ali, independentemente de o local estar sujo. A vista era deplorável para os nobres, mas, para eles, era como um pequeno refúgio contra os males do Rei Rick, contra as ameaças de ataques de Mellow, o Soberano de Aimo, contra o mal.

- Lankher! - Sonia o alertou. - Daqui a pouco estarei aqui!

- Tudo bem, mamãe. - Sorriu para ela. - Também estarei aqui.

Ela se retirou, andando em direção a Torn, e Lankher, sem saber o que fazer direito, apenas se sentou num pequeno banco que se encontrava ali.

Num canto oposto àquele, um homem com cabelos escuros, aparentando estar em seus quarenta anos, de barba hirsuta e roupas reais, com uma couraça de prata sem brilho na frente e sedas grossas e vermelhas por todo o corpo, o observava. Via tudo: suas atitudes, para onde ia sua mãe, e até as roupas que trajava. Era do castelo de Ozit, e, para eles, aparecer nas cidades era muito perigoso, até porque o povo andava agindo com hostilidade devido à falta de alimentos nas cidades.

O homem endireitou o corpo e andou a passos largos na direção da criança. Ao chegar até ela, lhe mostrou os dentes. Lankher, ao ver suas roupas reais, sobressaltou-se e quase gritou para que todos vissem a cena, mas o homem o mandou ficar quieto, pedindo tão amigavelmente que sugeria que os dois se conhecessem por tempos.

O nome dele era Sidder.

- Olá, garoto - disse ele. Sua voz era grossa e enrolada, resultado de falar rápido demais. - Por favor, não chame atenção.

Lankher recuou um pouco, receoso, mas Sidder não deixou que se formasse um espaço entre eles. Chegou para a frente. Seu cabelo era escuro, e seus olhos pareciam uvas dos cachos reais, verdes como Ceroza.

- Sou Sidder; você se chama Lankher Rievo, estou certo?

- Está sim - Lankher respondeu, sentindo seu medo a pulsar nos dedos. Afinal, era uma criança diante de um nobre. - Por quê?

O homem chamado Sidder pusera-se nas pontas dos pés, a ponto de cobrir totalmente o garoto, e ocultar o sol radiante. Lankher chegara a tremer de medo. Sidder sorrira, revelando dentes amarelos. Aquele tipo de sorriso desagradável, mesmo naquela barba extensa a suavizá-lo.

- Você é minha chave.

Fora exatamente isso que dissera. Obviamente, nada entendera a criança.

Mas antes que pudesse questionar a respeito, Sidder já havia partido a passos largos até o outro lado de Render, ao castelo. Um ataque de fúria se aproximava. Ficou de pé, pronto para ir atrás do tal homem, quando alguém o chamou pelo nome; uma garota.

1 - Terra de Sombras - A Revolta de OzitOnde histórias criam vida. Descubra agora