Capítulo 7 - A Fogueira

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Anne 



Minha cama nunca fora tão confortável. Aquela noite ela parecia estar me abraçando, amigável, deliciosa. Mas percebi que era porque estava muito cansada.

Lembro-me do dia que se passara. O primeiro dia desde a morte de Sonia.

Saí do meu quarto azul para escovar os dentes, quando fui surpreendida por minha mãe, Laura, que falava comigo como se a estivesse atrapalhando de fazer algo, o tempo todo.

- Garota, apresse-se. Além de péssima lutadora, ainda é irresponsável?

Ela gostava de evitar a palavra filha, a qualquer custo.

Minha mãe já fora uma mulher melhor, minhas memórias mais antigas insistiam em afirmar, mas geralmente andava séria e inexpressiva. Tinha uma aura sombria, impregnada sobre sua vida. Não fazia ideia do que tinha acontecido, mas ela me assustava. Aliás, eu tinha nove anos. Uma criança.

- Mãe, não vou me atrasar.

Mas eu não tinha certeza disso. Meu cabelo estava parecendo ferro queimado, e eu não tinha ideia de que roupa utilizar. Até porque não podia me vestir de qualquer jeito; Lankher estaria lá. Reconhecia que precisava ajuda-lo. Precisava estar com ele, não por pena, e sim porque ele era um amigo que precisava de apoio. Tinha certeza de que era sua única amiga, e ele precisava de uma forte amizade. Além disso, ele era um garoto divertido. Sério, mas divertido.

Terminei de escovar os dentes, pronta para escovar o cabelo. Nunca demorei para fazer isso, muito menos naquela época, que meu cabelo era curto e muito sedoso. Uma vez, meus pais me inscreveram numa competição pública em Ceroza, uma competição de cabelo: a moça que tivesse o melhor cabelo receberia 3000 Bisteris, a qual venci. Até havia sido convidada para uma outra competição continental, mas não pude ir.

Não posso sair do Continente Oeste. Nunca.

Voltei ao quarto, me vesti com calças de linho e uma camiseta de alças simples, e fui embora sozinha para o treino. Minha mãe estava perambulando pela casa, mas não era por minha causa. Ela deveria estar tendo pesadelos, ou aguardando minha saída para poder fazer algo. Não nos despedimos.

Caminhar por Ozit sempre foi uma surpresa para mim, por ser muito diferente de Ceroza. Árvores eram maiores, o relevo era mais plano, a umidade era muito maior, e as pessoas eram mais agressivas. Lá era frio se comparada à minha cidade natal, mas mesmo assim era legal. Com exceção dos mosquitos, era mesmo.

Vi Lankher logo assim que cheguei: o garoto gordinho de cabelo encaracolado castanho que conheci há três dias, e agora parecia mais corajoso do que nunca. Parecia acabado, totalmente dependente de alguma companhia, mesmo com uma adaga de bronze embainhada ao flanco. É tão jovem quanto eu, me forcei a lembrar, carece dos mesmos afetos que eu.

Fui até ele. Lankher era quieto o tempo inteiro, então nossa amizade tinha a regra básica de eu puxar o assunto. Algo não muito difícil para mim.

- E então, como você está, Lankher?

Ele olhou para mim. Juro que senti receio de seu olhar austero.

- Essa é a primeira vez que você fala baixo perto de mim.

Ele sorriu, então também sorri, nervosa. Me sentia feliz perto dele. Que ideia má de sentir medo do meu amigo. Havia muitas outras pessoas que deveria realmente temer, como, por exemplo, as pessoas com quem dividia a casa.

1 - Terra de Sombras - A Revolta de OzitOnde histórias criam vida. Descubra agora