Carla narrando
— Como consegue se concentrar com todo esse barulho? - Tomas me perguntou, enquanto estava sentada no sofá do estúdio da nossa casa "lendo" um livro.
— Parece loucura, mas ouvir você tocar é algo relaxante. - sorri e voltei a ler.
— Se você diz... - tocou e deu outra pausa. — Mas quer que eu pare?
— Claro que não Tomas, mesmo se quisesse... Quem teria que sair daqui sou eu e não você. Afinal, essa é sua área de trabalho na casa.
— Se não estou te atrapalhando, então peço que fique comigo. Assim nas pausas posso ficar te admirando. - ri e concordei com a cabeça, voltando ao livro. Tomás voltou a tocar.
Amava ficar no estúdio enquanto ele estava tocando. Não dava um pio pra não atrapalha-lo e era como se eu nem estivesse ali. Hoje seria o primeiro show dele depois que voltamos de viagem. Na verdade, a turnê havia voltado, pois nesse tempo em que estivemos fora, por sorte, não tiveram que fazer nenhum show.
Até agora, Tomás e eu não havíamos discutido pra valer. Só pequenas briguinhas de casal, que depois resolvíamos de boa, como o fato da turnê estar prestes a começar e eu não poder ir a todos os shows fora dos Estados Unidos. Sentia-me muito cansada ultimamente. Tomás e eu discutimos muito sobre isso a alguns dias. Ele cismou que quer me levar a todas as viagens e não quer se separar de mim de forma alguma. Tentava convence-lo de que seria bom pra ambos e também não queria tirar a liberdade do mesmo, sendo tachada de esposa chata que não larga o marido.
Também brigamos pelo fato do Tomás não me deixar fazer absolutamente NADA. Quando digo nada, é nada mesmo. Ele quer sempre fazer tudo pra mim, tanto em casa como na rua. E por mais que eu achasse fofo no início, aquilo já estava me deixando chateada. A vida toda fui mantida presa sem poder fazer as coisas que queria. Não era só por ciúmes que o mesmo o fazia, mas também por conta da minha deficiência e esse era o ponto que mais me irritava. Eu sou cega, não paralítica.
E pra completar ainda mais, andava um pouco nervosa e me sentindo mal algumas vezes. Então, coisas que eu sabia lidar muito bem em relação a preocupação demasiada do Tomás para comigo, com essas mudanças repentina de humor, me dava vontade de brigar com ele toda vez que não me deixava.. Lavar a louça, por exemplo.— Vou pegar um copo d'água e já volto. - conhecia a casa com a palma da minha mão, então tinha certeza que me viraria muito bem... Se o Tomás deixasse.
Ameacei levantar.
– Aqui. - encostou a garrafa de água gelada no meu braço. Acho que era pra me fazer rir, mas não esbocei nenhum sorriso.
— Eu posso ir a cozinha pegar. - me levantei.
— Pode tomar aqui, amor.
— Eu quero no copo.
— Eu pego pra você. – ouvi os passos dele se distanciando e voltei a sentar no sofá fazendo bico.
Viu o que eu disse? Tudo bem que era fofo todo esse cavalheirismo e tal, mas imagina alguém que até no banheiro quer te levar? Não tenho mais 5 anos e não moro mais com meus pais. Já sou bem grande pra fazer as coisas e sei que ele só faz isso, porque tem medo de que eu me machuque. Mesmo com o Sammy me guiando pra todo lado e ainda usando a bengala, ele se preocupava. Nem lá fora sozinha eu podia ir.
— Tá aqui. - entrou de novo no estúdio e ouvi seus passos em minha direção. –Que foi?
— Nada. - disse, enquanto Tomás segurava minha mão e entregava-me o copo.
— Você não está com uma cara muito boa.
— Tomás... Já percebeu que nesse um mês e meio que estamos juntos, ainda não fiz nada sozinha?
— Como assim?
— Tomás... Você está em toda parte, pronto pra fazer tudo pra mim. Se você pudesse, até no banheiro pra mim você iria. Não me deixa nem ir no quintal sozinha.
— Isso não é verdade. – disse indignado.
— Olha, não tenho nada contra você fazer isso, as vezes. Mas sempre? Eu sou cega. Só isso. Não tenho nenhum problema que me impeça de fazer as coisas. Nem lavar a louça você deixa!
— Eu faço isso porque...
— Porque o que?
— Carla... Só não quero que se machuque.
— Falei com você aquele dia sobre o estúdio de balé e você nem ligou. E mais, disse que não era uma boa eu fazer isso. Cadê o Tomás que disse que ia me apoiar?
— Eu vou te apoiar Carla mas mão sei se é uma boa isso, agora. – tinha a voz um tanto duvidosa.
— Por que eu não enxergo? - abaixei a cabeça.
— Não é nada disso.
— É ciúmes que você tem de mim? O que é Tomás? Nem sair com a Vitória eu posso!
— Carla... Entenda que o mundo é perigoso demais e você...
— É deficiente. - cruzei os braços.
— Não põe palavras na minha boca. Já disse que não quero que se machuque. Não entende que vou passar um tempo longe? Que se te acontecer algo vai demorar até eu chegar aqui e não posso perder você?
— Por que acha que vai acontecer algo grave comigo enquanto estiver fora? Eu vou ficar bem.
— Carla me desculpa, mas eu acho que não. Você não sabe nada sobre como se virar sozinha e é por isso que eu quero que você vá comigo.
— Eu iria saber me virar se você me ensinasse. E mais, a Vivian, a Bete e a Vitória vão estar aqui. - falei me levantando e quase soltando fumaça pelos ouvidos. – Você não me ensina a fazer nada. Só quer que eu fique sentada como se fosse uma boneca de porcelana que vai quebrar só de dar um passo.
— Você colocou isso na sua cabeça.
—Não coloquei. Olha só tudo que você faz. Me trata como uma criança.
— Não faço isso. Só me preocupo com você, não quero que se machuque. Estou tentando manter a minha promessa, que é cuidar de você até meu último dia de vida. Mas você deixa? É claro que não.
— Você pode cuidar de mim. Pode fazer tudo que quiser, mas me deixe viver. Eu nunca pude fazer nada, porque os meus pais sempre me mantiveram assim. Sentada no meu quarto ouvindo a vida passar e não podendo participar de nada e você está fazendo a mesma coisa. - ele ficou em silêncio e voltou a andar.
— Posso ir com você em alguns lugares mas não posso ficar a turnê toda com você. Não me sinto bem pra viajar agora e... – começou a tocar e parecia com raiva. – TOMÁS VOCÊ ESTÁ ME OUVINDO? - tocava cada vez mais forte. Parecia que ia quebrar tudo. — QUEM SABE ISSO TAMBÉM POSSA TESTAR A SUA FIDELIDADE.— COMO É QUE É? - parou e levantou a voz também, o que me deixou surpresa. Mas essa era a primeira vez que eu também levantara a voz com ele. – VOCÊ É UMA INGRATA POR ESTAR FALANDO ISSO!
— INGRATA?! VAI VER ESSE TEMPO QUE VAI FICAR SEM MIM SEJA UM BOM TESTE PRA VER SE VOCÊ AGUENTA SER O HOMEM DE UMA MULHER SÓ!
— DIGO O MESMO EM RELAÇÃO A VOCÊ!
— VOCÊ SÓ PODE ESTAR DOIDO! EU SÓ TIVE VOCÊ A MINHA VIDA TODA! E VOCÊ?! - não respondeu e voltou a tocar. Andei devagar até a porta do estúdio, que tinha plena consciência de onde ficava sem usar nenhum auxílio. O ouvi abrir a porta.
— VIU O QUE EU DISSE! NEM A PORTA TOMÁS!— SÓ QUERO SER GENTIL.
— MAS ATÉ QUANDO VOU AO BANHEIRO VOCÊ FAZ ISSO!
— NÃO FAÇO MAIS!
— ÓTIMO!
— Ótimo. - abaixou o tom de voz, mas ainda parecia chateado.
Peguei a minha bengala no bolso do casaco e a abri, andando e chamando o Sammy. – Vamos garoto.
E aí? Acham que os cuidados de Tomás são exagerados?
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O amor é cego
Teen FictionAos 14 anos Carla perdeu a visão. E após isso sua família se distanciou e a vida perdeu sentido pra ela. Até encontrar Tomás, um baterista de uma banda muito popular, o problema é que o encontro só foi possível por conta de sua irmã, uma garota rud...