Capítulo Trinta e Oito

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A água do mar batia exatamente onde o último degrau do deck começava. E, quando eu era criança, esse era o meu lugar favorito na casa inteira.

A música da festa estava distante, quase como um sussurro, e tudo o que eu ouvia de verdade era o som das ondas quebrando embaixo do cais de madeira. Assim como a música, as luzes tinham praticamente desaparecido também, e agora os lustres e holofotes foram substituídos pelo reflexo brilhante da lua no mar. De longe, era quase fácil esquecer que oitenta e sei lá quantas pessoas estavam juntas, lá no jardim, comemorando esse dia. O meu dia. E era também quase menos doloroso pensar na única pessoa que não estava.

Todos os dias eu acordava e dizia para mim mesma que estava tudo bem, que eu poderia aguentar só mais aquele dia, e suportar só mais aquela memória, porque não doía mais tanto assim. Mas, em dias como esse, eu já não tinha mais tanta certeza.

-Por que você não está aqui? - Falei baixinho, olhando para o céu, como se, por estar ali, ele me ouviria e responderia de algum jeito.

-Ele estaria, se pudesse.

Ouvi a voz de Jace atrás de mim e o susto me fez pular no degrau.

Ele estava em pé no píer, com o blazer dobrado no braço e uma sacola na mão.

-Mason... - Ele continuou, depois que eu não falei nada. - Ele estaria aqui, se pudesse.

Levantei do degrau, mas não subi. A água gelada ainda batia contra os meus pés descalços e acho que essa era provavelmente a única coisa que me deixava concentrada e alerta o suficiente para ter essa conversa.

-O que você está fazendo aqui? - Perguntei, com os braços cruzados.

-Minha mãe estava procurando você. Ela queria se despedir antes de ir embora.

-E como sabia que eu estava aqui?

Ele deu de ombros.

-É onde você sempre está. - Disse, simplesmente.

Assenti.

Dei uma última olhada para o mar atrás de mim, deixei a última onda de água salgada bater nos meus pés, respirei fundo e me obriguei a subir o resto dos degraus até o lugar onde ele estava. Passei direto por ele, peguei os saltos que tinha deixado no canto e comecei a andar em direção a casa, quando seus dedos se enrolaram ao redor do meu pulso, e me puxaram em sua direção. E, de algum jeito, por algum motivo, meus pés se recusaram a se mexer.

Jace soltou o meu pulso lentamente, e seus dedos correram por todo o meu braço até o meu rosto. Ele não se aproximou mais, e não me aproximou mais também. Ao invés disso, sua mão parou bem debaixo dos meus olhos e secou o que devia ser uma bagunça de maquiagem preta e lágrimas que, até aquele momento, eu não tinha nem percebido que tinham caído.

-Ellie... - Deixou escapar, com um suspiro.

-Eu estou bem. - Disse, com os olhos fixos em um ponto no mar. - Está tudo bem.

Repeti e percebi que poderia ter dito outras cinquenta vezes que mesmo assim não teria sido o suficiente para me convencer do que aquelas palavras significavam.

Jace passou os braços ao meu redor, me apertando forte, cada vez mais, como se todos os pedaços de mim fossem estilhaçar se ele não fizesse. Me deixei ficar ali por todo o tempo que precisei, me deixei sentir protegida e cuidada até poder assegurar a mim mesma que eu ficaria inteira se me afastasse, e ignorei a voz da minha cabeça gritando que isso não era uma boa idéia, durante todo o tempo.

Ele não disse nada, não se mexeu, ficou tão imóvel quanto eu, esperando uma avalanche de sentimentos que não veio.

Foi como se, de uma hora para outra, sentisse que já tinha quebrado demais, chorado demais, para me deixar estilhaçar bem ali.

-Está tudo bem. - Experimentei de novo o som das palavras na minha boca e descobri que conseguia falar com um pouco mais de convicção dessa vez.

Jace se afastou um pouco, me dando apenas o espaço suficiente para me encarar com aqueles olhos azuis gigantes e decidir por ele mesmo se acreditava ou não em mim.

-Você não precisa fazer isso, sabe? - Ele falou, com a voz rouca. - Está tudo bem se não estiver bem, Ellie.

Deixei os ombros caírem e voltei os olhos para aquele ponto fixo onde o céu encontrava o oceano, mantendo-os lá na esperança de que se ficasse bem parada, se não movesse nenhum músculo, eventualmente a dor seria familiar e iria embora.

-Não sei o que fazer. - Admiti, depois de um tempo. - Não faço a mínima ideia.

Jace encostou no meu queixo e me fez virar para ele.

-Você acorda todas as manhãs e vai pro trabalho. Sorri quando achar que deve. Passa o tempo livre pensado nele, sem se repreender quando fizer, porque entende que não dá pra simplesmente ignorar uma história como a de vocês. Você fica triste, depois dormente, e reza para que fique assim pelo resto do dia. Daí você vai pra cama, torce para dormir um pouco e, quando acordar, faz isso tudo de novo. Quantas vezes precisar.

-É isso o que você faz?

Ele deu de ombros.

-Às vezes. Nos melhores dias.

-Existe essa coisa de "melhores dias"?

-Claro que sim. - Ele deu um sorriso fraco. - Vai ter sempre alguma coisa, alguém, algum lugar, que vai fazer com que tudo não pareça tão ruim assim, que não tenha que doer tanto assim. Você só precisa estar disposta a ver.

-Você faz parecer tão fácil...

-Não é fácil. É uma merda, na verdade, mas é melhor do que a alternativa.

-E qual é a alternativa? - Perguntei baixinho.

-Fechar tudo. - Respondeu, com a voz fria. - Se fechar para as pessoas e para o mundo ao seu redor. Se fechar para a vida e todas as chances que estão te esperando lá fora.

Jace sabia que eu sabia que aquele era o caminho mais fácil. Que fugir era mais fácil do que ficar. Que se esconder era mais fácil do que enfrentar. Mas também sabia o quão difícil poderia ser o caminho de volta depois.

Ele deu um passo para trás e ergueu o braço que segurava a sacola, na minha direção.

-É pra você.

-Você não precisava...

-Não é meu. É dele.

Engoli em seco e peguei a sacola com as mãos trêmulas.

-Obrigada, Jace. Por tudo.

Ele foi até mim e deu um beijo na minha testa.

-Feliz aniversário, Eleanor. - Sussurrou.

Vários minutos tiveram que passar até que eu juntasse a força necessária para sair da posição em que estava — parada, em pé, no meio do deck — e um pouco mais do que isso para me encostar contra o parapeito longo e olhasse o que tinha dentro da sacola. Mas, não precisaram mais que alguns segundos para que reconhecesse a embalagem de plástico que embrulhava o bolo de chocolate do Serendipity, ao lado do envelope branco com o meu nome escrito no verso, junto com a mensagem: Para o seu próximo aniversário.

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