Capítulo 21 - Histórias Paralelas, parte 1

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Em uma terra amaldiçoada ao sul...

- Senhor... Não parece muito bem... Algo interrompeu seu sono?

O olhar quase sem vida do homem sentado em uma cadeira velha de madeira acinzentada pela poeira, com suas roupas esfarrapadas também acinzentadas apenas encaravam a pessoa que o indagava. Era uma pergunta idiota. Mas... Tudo que o envolvia começou com uma pergunta, não é? Seu pensamento devaneava por alguns instantes, trazendo memórias dolorosas que o faziam fechar os olhos novamente.

- Eu entendo, meu senhor... Vou me retirar.

- Espere.

- Meu senhor?? - a pessoa se voltava para ele, com um joelho no chão. - Tem alguns anos que não fala... Em que posso lhe ser útil?

- Undin.

- O que ele fez?

- Undin. Traga-o aqui.

- Sim, meu senhor.

E a pessoa à sua frente saía a passos apressados das ruínas. Depois de longos cinquenta anos, seu mestre havia falado algo, reagido. Já estava mais do que na hora, pensava a pessoa que colocava um capuz antes de sair das ruínas. O homem sentado na cadeira ficava encarando o vazio, como se não tivesse percebido que quem ali estava já havia se retirado.

- Tem algo mais... Eu sinto... Aquela alma novamente... Não deveria estar aqui. É tudo culpa dele... Fui enganado. Traído. Consegui o que queria, mas... A que custo? Traga-o para mim também, Sari. - e então, ele piscava os olhos. - Oh... Já foi... Me desculpe, Maria...

Alguns dias se passaram, desde esta pequena conversa. Sari reaparecia, com medo, nas terras amaldiçoadas. O homem sentado em sua cadeira empoeirada não havia se movido um centímetro sequer, as plantas trepadeiras que cobriam suas pernas deixavam isto claro. Sari podava as plantas ao redor dele todos os anos, mas só pra passar o tempo. Tudo ao redor daquele homem morria, exceto os seus Legados. Sari se sentava ao lado dele, segurando sua mão, segurando o choro.

- Papai... Digo, meu senhor... Undin não quis vir. E ele me bateu! Mesmo que eu me recupere... Dói. Doeu muito... Por que ele é tão mau comigo?...

- Sari... Onde está sua mãe? Eu não consigo ver... Está tudo tão... Tão cinza...

Sari suspirava e soltava a mão daquele homem. Já havia ouvido essa frase centenas de vezes. Ele estava dormindo. Sari se afastava e andava pelas ruínas daquela casa até chegar a um canto, onde uma cama de criança permanecia no lugar. Estava menos empoeirada que o resto dos destroços, e Sari se sentava ali.

- Papai... Espero que um dia se acorde de verdade... Assim a gente pode brincar, correr... Até me dar bronca se quiser... Mas se acorde, por favor...

Sari levantava os olhos e tinha um vislumbre, rápido, porém com tempo suficiente para fazer sua cabeça começar a latejar como se fosse explodir. Seus olhos conseguiam enxergar aquela fatídica tarde, quando tudo aconteceu. Todo o medo, todo o terror, toda a dor que aquilo trazia na sua memória acabou enlouquecendo a criança que ainda existia nas lembranças de Sari... Que gritava de dor e começava a chorar, caindo no chão, se arrastando até a sala onde o homem estava sentado, levantando sua mão para ele até finalmente desmaiar. Quando acordou, a primeira coisa que viu foi a figura de olhos verdes.

- Sakir... Você é uma criaturinha patética. - e recebia um chute nas costelas. - Imortal, com um bom poder, mas com saudade de quando era normal. - e recebia um chute no estômago. - E, ainda por cima, não consegue matar o Undin.

- Pa-papai...

- Não. Eu não sou seu pai.

E recebia um chute em seu rosto, que borrava sua visão. Quando finalmente abriu os olhos, o homem na cadeira continuava no lugar. A poeira no chão não havia sido remexida. E a figura de olhos verdes, que tanto parecia seu pai, não estava lá. Nem nunca esteve. Era só uma lembrança. Uma péssima lembrança. Sari se levantava e começava a gargalhar, rindo de sua própria desgraça. Sakir, era este seu nome de batismo. Nunca mais seria chamada assim, nunca mais sua infância ia voltar. Agora era Sari. Sari, que significa "sanidade". Irônico... Pai. E Sari voltava a se sentar, de frente para o homem sentado em sua cadeira empoeirada, com trepadeiras crescendo por suas pernas, que com seus olhos fechados fitava sua decadência.

Herança de Sangue - Parte UmOnde histórias criam vida. Descubra agora