Os Jones

653 66 10
                                    

Brittany
Lembrei-me da festa dos Jones a caminho de casa, essa não era exatamente minha ideia de felicidade mas havíamos dito que estaríamos lá, e achava importante cultivar a boa vizinhança. assim que entrei em casa, constatei que Sany já havia voltado do "trabalho", pois ouvi passos no andar de cima, em nossa suíte. então subi as escadas para lembrá-la da festa, não vou dizer que me esgueirei até o quarto mas admito que não fiz o menor esforço para anunciar minha chegada. no vão da porta, vi que Sany sofria para abotoar um vestido rosa, havia algo de estranho em seus movimentos, mas eu não sabia exatamente o quê. de repente ficou imóvel como uma gazela pressentindo a aproximação da caçadora,  depois se virou.
Amor! — disse com um sorriso forçado. — não vi você lá embaixo.
Acabei de chegar. — meus olhos estavam pregados nos dela. — como foi o trabalho? — ela deu de ombros, indiferente.
Tranquilo, o de sempre. — quando se aproximou de mim, farejou o ar, as narinas latejando de reprovação e franziu as sobrancelhas.
Andou bebendo com a Laur outra vez?
Fui assistir ao jogo de basquete no bar — falei como quem não quer nada — e apostei uns trocados com o pessoal.
E ai, se deu bem? — pensei em Lucky e nos acontecimentos da noite.— A sorte demorou a chegar, mas logo foi embora — respondi, sei que o humor ácido não é politicamente correto mas caramba uma garota precisa se divertir um pouco quando não pode contar com uma conversa estimulante na companhia da própria mulher. Sany passou por mim, saiu do quarto e fez o que pôde para evitar que nos tocássemos, a famosa dança dos casamentos falidos. segui-a escadaria abaixo e peguei uma garrafa de vinho ao passarmos pela cozinha, estava até aliviada por termos uma festinha pela frente. um pouco de conversa fiada, regada a um bom vinho, talvez fosse mesmo a melhor pedida da noite.
Tudo bem no escritório? — perguntei, já na varanda dos Jones. parecíamos o perfeito casal americano.
Tudo ótimo — não falava muito mais do que isso quando o assunto  era trabalho. — E o jogo, como foi?
Péssimo — respondi sem pensar. — Os Knicks perderam por um ponto na prorrogação.
Os Knicks jogaram hoje? — ela perguntou, ajeitando meus cabelos como fazia de vez em quando.
Jogaram. Ei, para com isso... — eu disse rindo, e voltando os cabelos para o lugar de sempre, tentando me lembrar se os Knicks tinham realmente jogado naquela noite. felizmente a porta se abriu, Samuel e Mercedes nos receberam como se fôssemos suas melhores e mais antigas amigas.
— Bem-vindas, vizinhas!
Oi! — eu disse, trocando um olhar assustado com Sany, caprichando no sorriso para que não parecesse tão falso. Sany e eu ficamos juntas o suficiente para que nos servissem os drinques e nos julgassem o mais feliz dos casais, depois nos dispersamos, visitando cada uma das rodinhas de conversa. acabei chegando ao piano de meia cauda, onde um convidado com o cabelo emplastrado de gel tocava alguma coisa: "Stairway to Heaven", do Led Zeppelin, ou a "Mondschein", de Beethoven, eu não sabia ao certo. depois atravessei uma nuvem de fumaça de charutos produzida por um grupo de investidores que não falava de outra coisa a não ser de ações e debêntures.— Está brincando? — disse um deles. — A Duxbury jamais chegará a esse preço! ouvi dizer que as ações estão sendo abatidas a cutelo.
Um banho de sangue — confirmou a outra.
E você, Brittany, como se saiu neste trimestre? levou uma surra? — tive a impressão de que alguém estava se dirigindo a mim. isso mesmo. precisei relembrar a pergunta.
Na verdade — eu disse, apontando o polegar na direção hipotética da minha casa — toda a minha grana está enterrada naquele jardim ali ao lado. — o que eles acharam engraçadíssimo, muitas gargalhadas e tapinhas nas costas, por uma fração de segundo fiquei tentada a dizer àquela gente o que mais estava enterrado no meu jardim, mas ainda não estava bêbada o suficiente e eles também não. um problema que precisava ser remediado já.

Santana
"Acham que somos o casal perfeito", pensei enquanto sorria e retribuía os beijinhos. aquelas mulheres e homens eram loucos por Britt e tinham inveja de mim, os homens piscavam os olhos e diziam que Britt era "uma mulher de sorte" às vezes me abordavam na cozinha e diziam a mesma coisa pra mim que eu tinha sorte. ah, se eles soubessem... não passávamos de um par de bonecos, Barbie e Ken.. e nossa casa dos sonhos era na verdade uma fachada de plástico ou talvez eu estivesse apenas cansada, missões como a daquela noite às vezes me deixavam deprimida eu preferia mil vezes o bom e velho tiro certo. além disso, não se tratava apenas de um disfarce: aquela era a minha vida, aqueles eram os meus vizinhos. pessoas legais (a maioria deles) talvez só um tantinho enfadonhas, esse era o mundo perfeito com o qual eu sonhei desde menina. portanto, talvez fossem os trajes de dominatrix sob o vestido que me davam a sensação de não pertencer àquele lugar, uma "vida dupla" para a maior parte daquelas mulheres significava abandonar as obrigações de mãe e esposa para presidir voluntariamente a Associação de Pais e Alunos. o que diriam se soubessem o que realmente faço da minha vida? como de costume, Britt logo me abandonou em favor da conversa mole com Sam, o que era fofo que ela tinha um certo pavor do boca de truta, deixando-me livre para trocar dicas de jardinagem e fofocas sobre os vizinhos com outras mulheres e alguns caras. então ali estava eu, conversando com 2 caras e três mulheres cujos acessórios incluíam um bebé entre os braços, a mamãe número um exibia sua queridinha como se fosse a primeira menina a nascer no planeta, tive de sufocar o riso quando o bebê "perfeito" regurgitou uma gosma horrível sobre as calças do terninho dela mas a mamãe número um apenas sorriu, resignada, depois olhou para mim e disse:
Segura ela um instante só enquanto eu me limpo?  —  o quê?? e a mulher jogou a criança nos meus braços, nenhuma das situações pelas quais eu havia passado naquela noite chegou a me assustar tanto quanto aquela.
É que... — tentei dizer mas a mamãe já havia desaparecido, prendi a respiração e baixei os olhos para ver aquele pacotinho que não parava de se contorcer. armas, nenhum problema. homens se comportando como bebés, ai eu tirava de letra mas bebezinhos de verdade eu mal sabia como segurá-los. "Deus queira", pensei "que eu não deixe a pobrezinha cair no chão!" por um instante a menininha e eu ficamos olhando uma para a outra, ela parecia tão assustada quanto eu por ter sido jogada naquela inesperada relação. talvez pudesse perceber que eu não era do tipo maternal. bebês não são a minha praia. E daí? Foi uma escolha que eu  fiz muito tempo atrás, nunca tive alguém de quem pudesse depender e escolhi uma vida em que não há lugar para ninguém que dependa de mim. coisas como amamentar às duas da madrugada ou ficar em casa por causa de um filho com febre jamais se encaixariam na minha agenda, sem falar que coloco minha própria vida em risco sempre que ponho os pés fora de casa para trabalhar. não seria capaz de fazer isso com uma criança. as outras mães viam a coisa por outro ângulo, Britt e eu eramos mulheres jovens, casadas, moravamos nos subúrbios abastados da cidade e ainda não tinhamos um filho.. eu via o ponto de interrogação nos olhos delas todos os meses, sempre que viam que nenhuma de nós duas tínhamos pegado barriga.
—  Filhos são tudo na vida, sabia? — disse a mamãe número dois.
Também acho — interveio a mamãe número três. — é como se eles fossem capazes de enxergar até a nossa alma! — Essa não! olhei para o E.T. em meus braços que também olhava para mim, seria possível que a espiãzinha fosse mesmo capaz de ler meus pensamentos? de ver minha alma e saber o que eu fizera uma hora antes com essas mãos que agora seguravam? respondi às mamães com um sorriso amarelo e tive a sensação de que a qualquer momento eu seria presa, julgada e condenada pelo estilo de vida que havia escolhido. de repente... ela sorriu para mim. a pequena assassina! por um instante não consegui respirar. foi como se tivesse recebido um choque elétrico direto no coração. 
Ela gosta de você! — disse Mercedes, olhando sobre meus ombros. por fim soltei o ar dos pulmões e sorri de volta para a criaturinha adorável. "Obrigada por não me delatar, bonitinha." senti uma espécie de alívio mas não foi só isso, senti também alguma outra coisa, muito estranha, que eu não sabia ao certo como descrever. ao tentar pegar o meu colar, a diabinha abriu o botão de cima do meu vestido rosa, revelando um pedacinho do couro que eu usava por baixo, rapidamente fechei o botão, na esperança de que ninguém tivesse visto nada, por sorte a atenção das mamães já havia se virado para alguma bugiganga nova nas prateleiras de Mercedes, mas eu sentia claramente um par de olhos distantes pregados em mim. os olhos de Britt, observando-me com o bebé no colo. estranho. eu jamais havia visto tanto medo estampado no rosto dela.

Sra. & Sra. Lopez (Brittana)Onde histórias criam vida. Descubra agora