Enterrando

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Santana
Deixamos a festa pouco tempo depois, falei que estava com uma dor de cabeça horrível e Britt desculpou-se dizendo que tinha uma reunião importante pela manhã, minutos mais tarde estávamos de volta a nossa casa adorável, vestindo nossos adoráveis pijamas, escovando os dentes diante das nossas adoráveis pias conjugadas.  nosso rosto refletido nos espelhos me fez lembrar daqueles quadros de museu, muito antigos, em que as pessoas são retratadas sem nenhum brilho no olhar, os gestos que fazíamos ao escovar os dentes pareciam ruidosos demais no silêncio. Britt cuspiu na pia e esfregou os olhos, olhei para ela — aquela mulher com quem eu partilhava as atividades mais ordinárias porém muito íntimas, do dia a dia — e vi uma estranha, eu não fazia a menor ideia do que se passava na cabeça dela. um mistério mas não um mistério bom. encontrei uma mulher certa vez, uma misteriosa desconhecida — uma mulher que dançava no fio da navalha e jamais olhava para trás, a não ser para tomar minha mão e me puxar para junto dela mas quando tentei seguir seus passosquando nos casamos ela desapareceu. quem sabe essa mulher jamais existiu? Britt levantou o rosto e viu meus olhos cravados na figura dela, sorri com os lábios retesados, então fomos para a cama. apagamos as luzes. puxei as cobertas até o queixo e dei as costas para minha esposa, talvez se procurasse, pudesse encontrar aquela mulher em meus sonhos. não sei se dormi. mas, deitada de lado, ainda de costas para Britt, tive a impressão de que via os segundos da minha vida se sucederem no relógio digital, os minutos parecendo horas. IIh15... 12hO4... Ih37... 3h00. de repente, dois telefones tocaram. semelhantes a um par de toalhas de banho. Britt e eu nos sentamos imediatamente e nos viramos em direções opostas, seria possível que ela também estivesse acordada todo aquele tempo? acendemos nossas luminárias, depois nos sentamos na beira da cama. cada uma de seu lado, como imagens espelhadas uma da outra. e atendemos nossos telefones.
Santana Lopez.
— Brittany Lopez.
Do outro lado da linha, uma voz masculina. elegante, sotaque latino. era meu chefe, codinome: Papá. eu podia vê-lo em seu escritório escuro e sóbrio, na minha imaginação ele jamais saía daquele lugar nem sequer dormia, a mente sempre ocupada com novos planos secretos.
São três da manhã — eu disse baixinho. — tudo bem... Papá? — uma nova missão. urgente. papai me deu as instruções com palavras curtas e diretas, dispensando qualquer tipo de amenidades. nenhum "Olá, como vai?". nenhum "Acordei você?" nenhum "Dê um abraço em sua mulher por mim".
Sim, tudo bem. claro — eu disse, um clique e a chamada se interrompeu, nenhuma palavra de despedida. atrás de mim, Britt ainda falava em seu celular.
Essa foi a segunda vez nesta semana — ela sussurrou, uma pausa
longa e: — certo, eu compreendo. tudo bem. — ouvi o clique do celular se fechando. ficamos ali, em silêncio por algum tempo. eu podia ouvir os pensamentos de Britt, viramos uma para a outra no mesmo instante.
O que houve? — perguntou Britt casualmente.
Papá não está muito bem — eu disse, afetando um ar de preocupação. — mamá está apavorada, acha que é pneumonia e provavelmente deve ser só uma gripe. — Britt refletiu um pouco e, com cautela, disse:
Talvez seja melhor você faltar ao trabalho amanhã... não custa nada dar um pulinho até lá e ver como o velho está. — analisei o rosto de Britt através da penumbra, "Por que tanta gentileza?" pensei.
Sua mãe ficaria super feliz — ela continuou — se você passasse a noite na casa deles. — "E você também, não é?" tive vontade de perguntar mas em vez disso falei:
Você é um anjo.
Só estou pensando na saúde do velho — ela retrucou, sacudindo os
ombros.  "Na saúde do velho... Sei."
E a sua chamada, quem era?
— Academia de Atlanta — ela respondeu de pronto, talvez um pouco demais. — eles estão tendo problemas então me mandaram um e-mail com os possíveis novos selecionados do semestre. vou ter que julgar — e sacudindo novamente os ombros, emendou: — De qualquer jeito eu já sabia que os próximos dois dias não seriam nada fáceis, vou trabalhar como um burro. — então balançamos a cabeça uma para a outra, satisfeitas. eu havia engolido a história dela e ela, a minha. como numa coreografia de bale, apagamos juntos as luminárias e voltamos para debaixo das cobertas.
Maldita seleção — sussurrei na escuridão.
Maldita, mesmo — ela retrucou. fechei os olhos e fiquei ali, no escuro, mãos cruzadas sobre o peito como as de um cadáver no caixão e podia sentir que Britt fazia a mesma coisa. lenta mas progressivamente, estávamos nos enterrando vivos.

Brittany
Madrugada — a melhor parte do dia para mim, o mundo se equilibrando entre a noite e o dia. escuridão e luz. passado e futuro. durante esse breve instante, tudo parece possível, maleta na mão, assoviando uma melodia qualquer, atravessei o gramado dos fundos em direção ao anexo que funcionava como meu estúdio pessoal de dança, como qualquer outra esposa feliz se preparando para mais um dia de trabalho. uma vez dentro, tranquei a porta e parei de assoviar, aquele espaço não passava de uma fachada para as verdadeiras ferramentas do meu negócio, como sempre, a bancada do torno deslizou facilmente para o lado, revelando uma tampa de metal sobre o chão. ajustei os números do cadeado, soltei a lingueta de metal e abri o alçapão, arrastando a maleta atrás de mim, desci uma escada, acendi a luz e avaliei as possibilidades. as pilhas de cédulas guardadas ali estavam criteriosamente organizadas segundo o país emissor, minha coleção de armas era quase um arsenal: morteiros, granadas, uma miríade de armas portáteis. escolher uma delas era como fazer compras num hipermercado, eu precisava de algo leve e quase invisível, mas com alcance e poder de fogo razoáveis. encontrei o que buscava, joguei na maleta e tranquei, uma vez fora do alçapão, voltei imediatamente ao papel de esposa feliz. assoviando, caminhei até a garagem, tranquei a maleta no porta-malas do carro e saí de ré em direção à rua, já inteiramente concentrada no trabalho. por puro condicionamento, olhei pelo retrovisor e me lembrei de que tinha negligenciado uma de minhas obrigações conjugais, apertei o controle remoto da garagem e a porta se fechou lentamente. e fui embora para minha outra vida.

Sra. & Sra. Lopez (Brittana)Onde histórias criam vida. Descubra agora