Mal-entendido

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Brittany
Avenida Lexington, conferi o endereço mais uma vez. mais duas quadras. mais duas quadras e eu saberia de tudo. estava na dúvida se deveria apertar o passo ou sair voando, preferi seguir andando calmamente, mãos nos bolsos, olhos grudados na calçada. dois cruzamentos depois, constatei que não era mais possível postergar o inevitável. criei coragem e olhei para o alto. lá estava: avenida Lexington, 550.

típico arranha-céu para inquilinos endinheirados

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típico arranha-céu para inquilinos endinheirados. quanto mais eu me aproximava, mais apertava o passo. atravessei a porta giratória como um foguete, praticamente fiz um sprínt até o balcão da recepção e conferindo uma última vez o endereço que já sabia de cor, corri os dedos pela placa onde se lia o nome de cada um dos ocupantes do prédio. achei. Suíte 5204E. e ao lado, o nome de uma empresa: "Triple-Click, prestação de serviços de informática" o sangue sumiu do meu rosto.
Não é possível — suspirei, foi como se aquela explosão no deserto me derrubasse novamente, se eu conhecia aquela empresa? claro que conhecia! na verdade, conhecia até uma pessoa que trabalhava lá. conhecia muito bem. uma pessoa que, por acaso, tinha uma relação muito próxima comigo.

(n/a: ignorem minha montagem de cherno e imaginem a assinatura de santana ai)

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(n/a: ignorem minha montagem de cherno e imaginem a assinatura de santana ai)

Santana
Sempre que possível, gravávamos nossas missões em vídeo. (embora eu me "esquecesse" de gravar certas missões, como aquela noite com Marco Racin — certas lembranças não fazem jus à posteridade.) muitas vezes algum detalhe visual acaba por revelar informações importantes. então coloquei as fitas de nossa malfadada missão para rodar em câmera lenta, disposta a examinar cada centímetro quadrado da tela. quando cheguei à fita da garotona do buggy, fechei o zoom, na esperança de captar algum detalhe que não havia percebido antes. um objeto reluzente chamou minha atenção. inclinei o tronco para ver melhor, parecia um...pisquei os olhos. parecia um cantil, daqueles que as pessoas usam para levar sua birita predileta ao Kentucky Derby ou a outro evento chique qualquer. como bourbon ou scotch... já ia avançar a fita quando algo atraiu o meu olhar. aquele frasco me parecia familiar, o que me deixou totalmente abismada, tive a mesma sensação de alguém que se hospeda num hotel e encontra um objeto seu dentro de uma das gavetas. claro, muitas pessoas andam por aí com seus cantis e suponho que cinquenta ou sessenta por cento dos cantis sejam de prata. talvez mais. avançando a fita mais um  ao lado dos pés do sujeito. torta. e daí? eu havia assado uma torta outro dia mesmo. torta de limão, para ser mais exata, a favorita de Britt. eu havia colocado uma fatia no lanche dela, antes de saber que ela teria de sair da cidade a negócios. teria Britt levado o lanche na viagem? "não sei, não verifiquei a geladeira." mas que bobagem a minha...muita gente faz torta todos os dias ou compra em qualquer delicatessen ou supermercado. todo tipo de torta. não há nada de especial numa torta e que importância tinha a torta naquele vídeo se parecer com uma torta de limão? além disso, tenho certeza de que muitas mulheres sabem fazer aquele plissado especial na borda da massa. o plissado que eu acreditava ser invenção minha. uma espécie de assinatura culinária. ora, uma mulher carregando um cantil de prata e comendo torta, uma torta de limão igualzinha à que eu fazia, com plissado e tudo bem, o que havia de incomum..? rapidamente voltei a fita até o dose no rosto da mulher e ampliei o máximo possível. a imagem estava muito granulada, quase não revelava nada. além disso, a panaca usava capacete e viseiras protetoras. poderia ser qualquer pessoa. mas a leve inclinação da cabeça, a postura dos ombros... o jeito especial de ficar de pé... eu já havia visto aquela mulher antes. não podia ver os olhos dela direito por causa das viseiras, o capacete cobria todo o resto, à exceção da boca, prestei atenção na boca. aqueles lábios...caramba. senti o sangue ferver no rosto, engoli a seco e me aproximei da tela para ver melhor. estava tão perto que meu nariz quase tocava o nariz dela, tão perto que meus lábios quase tocavam aqueles lábios...
Santana é a sua esposa — disse Camila atrás de mim, levei um susto e me virei para trás. mas Camila não olhava para o rosto estampado na tela, segurava um telefone na mão.
É a sua esposa — repetiu. — Já voltou de Atlanta, quer saber sobre o jantar.— ela tinha voltado. de Atlanta. ou de onde quer que de fato estivesse antes. talvez algum lugar ainda mais quente. mais árido. o chão pareceu se inclinar, imagens da minha vida pessoal e do meu trabalho se misturavam, resultando em conclusões que não faziam sentido nenhum. "Sua esposa..." palavras tão banais, de súbito sem nenhum significado.
Diz a ela que... — minha voz sumiu, dizer a ela o quê? que já sei de tudo? "agora já não sei de mais nada."
Diz que.. — Camila olhava para mim, sem compreender o que se passava comigo.
Diz que... o jantar será às sete.— virei-me na cadeira para dar mais uma olhada naqueles lábios, lábios que podiam levar uma mulher à loucura ou sussurrar uma vida inteira de doces mentirinhas.

Brittany
O jantar será às sete? isso é tudo que ela consegue dizer? o jantar será às sete?
o jantar é sempre às sete — resmunguei ao telefone, e depois desliguei, saí do prédio e fiquei ali um instante, parado na calçada, olhando para o 52° andar. o jantar será às sete, o jantar será às sete... Santo Deus! fazia cinco longos anos que eu acertava o relógio pelo horário do maldito jantar. eu escovava os dentes ao lado dela, dividia o mesmo doset. Diabos, eu dormia ao lado dela, completamente indefesa e exposta, pelo que poderia ser uma eternidade! e durante todo esse tempo... ela saía sorrateiramente para assassinar pessoas sempre que eu lhe dava as costas. ontem mesmo, caralho, tentou me APAGAR e tudo que consegue dizer é "o jantar será às sete?!". eu participava de joguinhos psicológicos com uma das agentes mais traiçoeiras do mercado. mas essa mulher...poxa, ela ainda me levaria à loucura. apoiei ambas as mãos numa lata de lixo da esquina, como uma bêbada prestes a vomitar, e lentamente deixei cair o papelzinho amarfanhado onde estava anotado o endereço. "agora tenha calma" disse para mim mesma, eu era uma profissional treinada para operar mesmo nas situações mais perigosas. tinha a experiência e as habilitações necessárias para lidar com isso também. levantei-me, arrumei os punhos da camisa e fui direto para o estacionamento onde havia deixado o carro, tinha uma perigosa missão a cumprir. iria jantar em casa.

Santana
Saí cedo do escritório, talvez pela primeira vez na vida. disse a Camila que não me sentia bem, que talvez algum inseto tivesse grampeado meu pescoço no deserto e por falar em grampear... "Lembrete: verificar carro, casa, corpo, à procura de grampos que aquela assassina de aluguel possa ter plantado enquanto tentava quebrar meu pescoço." Camila engoliu minha desculpa, pelo menos não disse nada. mas seus olhos faziam todas as perguntas. ainda era cedo para falar de minhas suspeitas? não podia contar a ninguém, nem mesmo a Camila, que sabia quase tudo a meu respeito. eu ainda não estava pronta. precisava ter certeza — ver com os próprios olhos — de que minha vida com Britt havia sido uma simples ilusão de ótica. quando cheguei em casa, meus dedos doíam de tanto apertar o volante do carro. minha sanidade mental repousava sobre uma única coisa: o jantar às sete. durante todo o trajeto, planejei detalhadamente o menu, decidi que pratos e que toalha usaria. pensei em parar para comprar flores. queria — ou melhor, precisava — que tudo saísse perfeito. pelo menos uma última vez, antes que tudo desmoronasse.

Sra. & Sra. Lopez (Brittana)Onde histórias criam vida. Descubra agora