Faca e fogo

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Brittany
Eu poderia ter atirado ali mesmo, mas cometi a burrice de olhar diretamente naqueles olhos de aço. não era o olhar tépido, enfastiado e oblíquo da mulher que eu pensava conhecer, mas um olhar de desafio, também duro como o aço. aqueles olhos eram capazes de deter qualquer adversária com uma única mirada e por um instante senti uma arrebatadora excitação, era como se... sei lá, como se minha mente e não apenas o meu corpo, estivesse subitamente subjugada por ela. como eu poderia destruir o que suscitava em mim aquele desejo de posse tão incontrolável? quando hesitei um segundo para decidir se acabaria com ela ali mesmo, aqueles olhos de aço cintilaram de maneira quase debochada. em seguida, com a naturalidade de alguém que entra num elevador, Santana se jogou pela janela. o coração batendo a mil, corri até o parapeito e vi que ela deslizava por uma espécie de corda. acho que naquele momento o tal desejo de posse bateu mais forte ainda, eu jamais deixaria aquele tesouro escapar! pulei atrás dela, isso mesmo. pulei. embora não contasse com o benefício de um fio de kevlar. nem de um para-quedas. eu despencava em queda livre de uma altura equivalente a cinquenta andares, tentando bolar um plano enquanto voava. Santana me viu, ficou devidamente chocada e quisera eu um pouco impressionada também. seria ótimo se ela não se importasse em receber uma visitinha naquele horário tão inconveniente. furando a escuridão, continuei caindo até me chocar diretamente com o corpo de Sany. agarrei os pulsos dela e depois seguimos juntas, penduradas na mesma alça. o peso adicional diminuiu a velocidade da descida, o fio começou a perder tensão até se afrouxar completamente, então ficamos ali, penduradas no meio do fio de kevlar, braços e pernas entrelaçadas num mesmo desejo de sobrevivência, cinquenta andares acima das ruas, onde a borbulhante vida notuma da cidade prosseguia alheia ao nosso pequeno probleminha. estávamos numa espécie de limbo, vertiginosamente suspensas no ar. acho que foi aquela altura toda que me deixou um pouco zonza. no entanto, devo confessar que Santana era o colete salva-vidas mais quente que eu jamais havia vestido em toda a minha vida. naturalmente, meu ego ficou um pouco avariado quando pude constatar que nosso inusitado abraço não havia produzido nela o mesmo efeito que havia produzido em mim.
Você poderia ter atirado lá em cima — ela disse. — Mas não atirou, um gesto delicado e suicida. — então ela ainda planejava acabar comigo! não se divertia tanto quanto eu com aquele romance aéreo! fiz menção de pegar a arma no bolso mas Santana apertou minha mão com a força de um alicate. poxa, onde será que ela vinha malhando? meus dedos pareciam estar sendo esmagados por um maldito gorila.
Fui descoberta lá em cima apenas porque eu quis — falei com sarcasmo. — Você é previsível, amor. sei exatamente o que se passa dentro de você. — virando o punho, Santana conseguiu enfiar a mão no meu bolso. ela estava atrás da minha arma!?.
Não era essa a impressão que eu tinha quando estávamos na cama — ela disse. — Será que você mudou tanto assim? — vadia! agarrei-a pelo braço e fiz com que girasse no ar, de modo que agora eu a prendia pelas costas, meus lábios na altura das orelhas dela.
Quem mudou foi você, fazia muito tempo que não demonstrava tanto interesse por mim. — Santana tentou se desvencilhar, mas quanto mais nos debatíamos, mas nos apertávamos naquele abraço quente, molhado e perigoso. — E fazia anos que a gente não ficava tão juntinhas assim — emendei, sussurrando. opa. Sany ficou tão furiosa com minha observação que finalmente encontrou forças para se desprender e virar, colocando-se face a face comigo. o que não foi de todo mal.
— Pode tirar o cavalinho da chuva — ela rosnou, contorcendo-se. ofegava ligeiramente. cansaço, ou seria algo mais? se dependesse de mim, ficaríamos penduradas ali por mais um tempo mas corríamos o risco de chamar a atenção da polícia se não resolvêssemos logo aquela situação. apertei meu corpo contra o de Sany e prendi o braço dela junto ao tronco, impedindo-a de levantar a arma e atirar.
Quem vai tirar o cavalinho da chuva é você — devolvi. — Vai sair da cidade. — ela grudou os olhos nos meus, nariz contra nariz, peito contra peito e...tudo o mais contra tudo o mais. depois seus olhos faiscaram, o que lhe caiu muito bem, devo admitir.
Está achando que vou me fazer de morta? — ela disse.
Por que não? — respondi. — Foi o que fizemos durante cinco anos de casamento.
6 anos! — Santana rosnou, dei de ombros e ela aproveitou a ocasião para executar uma impressionante manobra: arqueando as costas, liberou o braço e levantou a arma contra mim.
— Não vou a lugar nenhum. — falou secamente. então respondi com outra manobrinha não menos impressionante: balançando o corpo e chutando para o alto, consegui arrancar com os pés a arma da mão dela, um pouco de sorte e muita competência com perdão da imodéstia, permitiram que eu pegasse a pistola no ar, antes que ela despencasse das alturas.
Nem eu — falei. com a arma na mão, eu estava em posição de vantagem. aliás, a posição era ótima, como já foi dito anteriormente. em um derradeiro gesto de resistência, retirou não sei de onde uma faca. uma faca bem chinfrim, diga-se de passagem. balancei a cabeça em sinal de desdém.
Já deveria saber disto, amor: não se traz uma faca para um duelo de fogo.
— O duelo acabou, amor — ela disse entre dentes. depois rodou a faca no ar, mas não em direção à minha garganta, como era de se esperar. em vez disso, decepou o fio de kevlar acima de nossas cabeças, o fio que nos mantinha vivos lá em cima — em oposição a "mortinhas da silva lá embaixo". caralho! Qual seria a intenção dela? Matar a nós duas? um milissegundo antes que a parte decepada do fio voltasse ao prédio do escritório de San, soltei a arma e agarrei-me nela, sabia que não teria outra chance de salvação. em um arremedo de Indiana Jones, estendi as pernas para a frente enquanto despencava a mil por hora na direção de uma grande janela. Craaaaaash! estilhaços voaram por toda parte quando atravessei a vidraça, rolei no chão e fiquei de pé numa perfeita sequência de movimentos. "tacada de mestre" pensei, tomada daquela euforia de quem sente em cada célula do corpo: "ainda não foi desta vez!" limpei os cacos da roupa, voltei para o buraco que se abrira na janela e varri com os olhos o prédio da frente. nenhum sinal de Santana. respirei fundo e tomei coragem para olhar para baixo. nenhuma aglomeração de transeuntes, nenhuma mancha esquisita no asfalto. inacreditável. nós duas havíamos conseguido sair vivas daquela enrascada. minha mulher estava à solta, em algum lugar, planejando sua próxima investida. que seja. eu jamais havia enfrentado um oponente tão valoroso, ainda sentia o sangue ferver com a excitação da caçada, estava pronta para a batalha seguinte. "pode vir, meu amor, estou esperando." ajeitei minhas roupas e virei-me para ir embora quando percebi, pela primeira vez, a presença de uma faxineira recostada na parede. estava trémula e agarrava ferrenhamente o cabo da vassoura. na verdade, fiquei envergonhada.
Sinto muito pela bagunça — balbuciei e sentia mesmo, mas não tinha tempo para continuar ali e ajudá-la na limpeza. tinha uma esposa para matar.

Santana
Cortar a linha fora um risco calculado mas eu não tive escolha! estava dependurada sobre as garras da morte carregando um peso extra: minha quase ex-esposa. tinha de fazer algo drástico caso esperasse sair viva daquela situação, assisti a um retrospecto de minha vida inteira num único instante. fui salva pela lembrança da imagem de um trapezista que vi quando criança. se eu queria sobreviver não poderia pensar em seguir correndo em direção a um prédio, deveria acreditar que eu era um artista aéreo seguindo reto a uma plataforma — quem sabe até ouvir a música do circo, sentir o cheiro da pipoca, dos elefantes... topei no parapeito de uma varanda um milésimo de segundo mais tarde — cheguei a sentir os pombos abrindo espaço enquanto eu pousava: sã e salva! no mesmo momento me virei para ver como havia ficado minha... adversária. quando a vi, perdi o fôlego. juro. passei seis anos com uma mulher que acreditava merecer um prémio por sua habilidade de beber enquanto dirigia um carrinho de golfe e que o prémio deveria ser uma nova rodada de drinks servidos à beira da piscina do clube. a mulher que voara pelos ares como um Tarzã dependurado em cipós não podia ser a desastrada da minha mulher. incrível. eu sei: não é nada fácil voar pelos ares encarando uma vidraça pela frente mas ela sabia o que estava fazendo. eu assisti à manobra e não acreditei no que vi quando ela ficou de pé após um único e breve movimento. Céus! o que eu estava fazendo? eu não deveria estar admirando está mulher, suas habilidades ou seu físico. ela era uma mentirosa, uma fraude. chicoteei minha linha kevlar, enrolei-a no meu ombro e fui abrir a porta da varanda. eu tinha de sair dali o mais rápido possível e reencontrar minha equipe. Maldita! espero que ela não tenha sentido o que senti enquanto estávamos dependuradas, nem farejado meu medo, não meu medo de cair ou de morrer. meu medo dela. por dios... esses momentos sob as estrelas...foi uma das melhores noites que passamos juntas em vários anos. eu não sabia quem era aquela maldita mulher armada e perigosa, e não carregava nenhuma arma capaz de me proteger dela.

Sra. & Sra. Lopez (Brittana)Onde histórias criam vida. Descubra agora