Sorte

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Brittany
Merda! — eu disse, jogando as cartas na mesa. Mickey, meu amigo mais recente sorriu e puxou as fichas para si.
Faltava uma única carta! — reclamei, os outros caras apenas riram e trocaram piscadelas como se eu não estivesse ali para ver, a mudança da banca não me trouxe sorte nenhuma, e os resultados foram basicamente os mesmos.
Carajo! — reclamei de novo, outro amigo recente, P.J. ganhou a mão.
Essa foi... Porra! — de início meus companheiros de pôquer tinham relutado em me deixar entrar no jogo. o entanto, quanto eu mais perdia, mais ganhava a simpatia deles. impressionante, caras assim jamais esperam que uma mulher tenha cérebro. depois de três rodadas no prejuízo fiquei meio zonza, comecei a achar que devia parar mas eles me incentivavam com palavras de apoio: "Deixa disso princesa, tá cedo pra jogar a toalha", diziam. uns amigos da onça, isso sim. na mão seguinte, quando Curtis aumentou a aposta, fui logo dizendo:
Pago. quer dizer, passo. não...pago. — só parei quando Curtis lembrou que não era minha vez de jogar e depois perdi de novo.
Merda! — exclamei ao constatar que PJ. tinha blefado com um par de damas, fazendo com que eu passasse com uma trinca de dez na mão.
Essa eu mereci! — P.J. embolsou o resultado de sua vitória, (em grande parte dinheiro meu) depois olhou para mim com uma expressão de misericórdia e disse: — Tu nasceu pra perder, Rapunzel. é a força do destino, fazer o quê? — Mickey recostou na cadeira e começou a assoviar a abertura da famosa ópera de Verdi, e todo mundo riu. fiquei impressionada com a cultura musical dos caras, aquelas horas todas diante da TV, assistindo aos desenhos da Disney, afinal tinham valido para alguma coisa. era a vez do Curtis dar as cartas mas àquela altura o efeito da bebedeira e da jogatina já pesava tanto em minha cabeça que eu mal podia me sustentar na cadeira. será que o pânico estava evidente em meu olhar? Dei uma olhadela vaga em direção ao Curtis.
Não vem com esse olhar de peixe, não — ele advertiu e remexeu na cadeira de modo que eu visse a arma enfiada na cintura da calça, a mesma semi-automática que eu tivera a oportunidade de examinar de perto algumas horas antes. suspirei fundo e olhei para as minhas cartas. olhei para as minhas fichas ou para a falta delas. olhei para o buraco vazio sobre a mesa surrada onde antes estava o dinheiro que já não me pertencia mais. eu estava em maus lençóis, pior, estava na lona e precisava de uma bela vitória se quisesse sair viva daquele jogo. olhei para a porta, ainda nenhum sinal de Lucky. eu corria contra o tempo. suspirei outra vez e lentamente com o coração apertado, tirei do bolso do vestido a única esperança que ainda me restava: o cantil de prata. na superfície espelhada refletia-se o rosto de um pateta com cara de merda: o meu rosto, sob o olhar dos outros jogadores, alisei lentamente a prata, como se ali estivesse uma lâmpada mágica mas infelizmente nenhum génio apareceu para salvar a minha pele. apertei o cantil contra o peito, dei-lhe um beijo de despedida e solenemente depositei-o na mesa.
É prata pura — murmurei. P.J. quis olhar de perto para se certificar, viu a inscrição e leu-a em silêncio porém remexendo os lábios. depois, afetando uma voz de mulherzinha, disse em voz alta: — "Às balas que não nos encontraram. Santana." — pensei que os caras nunca mais fossem parar de rir. pelo menos não eram preconceituosos. Mickey até estalava beijinhos no ar, por fim P.J. jogou o cantil sobre o monte das apostas, o que significava que eu permaneceria no jogo por pelo menos mais uma rodada. estávamos prontos para a batalha final quando a porta se abriu com estrépito.
Mas que porra é essa aqui? — alguém rugiu, como se tomado pela ira divina, o jogo se interrompeu na mesma hora. um frio quase palpável preencheu a sala, não era difícil supor que o famigerado Lucky finalmente havia chegado.
Hora de puxar o carro, princesa — sussurrou Mickey, aflito. — Obrigado pelas lembrancinhas. — levantei a cabeça, decepção e má sorte visivelmente estampadas na minha testa, depois espremi os olhos para ver melhor o grandalhão recém chegado, não restava dúvida de que deixava Curtis no chinelo na categoria "meliante com cara de assassino". De longe o mais perigoso da turma ou será que... apertei ainda mais as pálpebras, tentando não sucumbir ao seu olhar.
Você é o Lucky? — perguntei, atropelando as palavras.
Sou eu mesmo — ele rosnou, esperando que eu saísse correndo dali com as saias borradas mas não foi isso o que fiz. continuei sentada, esperando. Lucky arregalou os olhos e inclinou levemente a cabeça, intrigado talvez um pouco impressionado com minha capacidade de não derreter como manteiga diante da presença dele.
Que foi, minha princesa? — ele disse. — Tá procurando encrenca? — lentamente balancei a cabeça e disse:— Você é a encrenca.
— Heim? — Lucky obviamente não entendeu. então me empertiguei na cadeira, sóbria até os ossos para que pudesse me explicar mas mamãe sempre disse que gestos valem mais que mil palavras. portanto, fiquei de pé, coloquei minha perna na cadeira quase mostrando minhas coxas e deixei meu gesto favorito falar por mim:
1. Começar com duas pistolas carregadas, com silenciador.
2. Sacar dos suportes.
3. Lembrar que o sacana fez por merecer.
4. Puxar os gatilhos.
Disparei as duas armas, deixando Lucky estatelado contra a parede, acho que dali em diante ninguém mais o chamaria de Lucky, o sortudo. meus novos companheiros de pôquer subitamente se deram conta de que haviam subestimado — que talvez, quem sabe, fosse eu a meliante mais perigosa naquela saleta imunda.— Curtis levou a mão à cintura, em busca de sua semi-automática mas, coitadinho, não sabia que a arma tinha sido surrupiada antes que as cartas da última rodada tivessem sido distribuídas. só por precaução. Estava em algum lugar debaixo da mesa.
Agora é tudo ou nada — eu disse, valendo-me de uma expressão do pôquer para encerrar a brincadeira. depois eliminei todos em volta da mesa, foi então que lembrei: minhas cartas ainda estavam ali. virei-as uma a uma e... par de valetes. poderia ter sido melhor mas naquelas circunstâncias, um par de valetes era mais que suficiente, afinal, eu era a única que não havia caído fora do jogo. Bem, tudo que é bom dura pouco, eu não tinha mais nada a fazer ali. o dinheiro que eu havia perdido estava à minha disposição, mas não me dei ao trabalho de pegá-lo, de qualquer modo, não passava de alguns trocados, verba para as despesas miúdas. peguei a única coisa que de fato me interessava: o cantil de prata.
Depois voltei com a arma de Curtis para seu devido lugar, caso ele tivesse herdeiros, a fim de evitar a fauna do bar, saí pela porta dos fundos, que dava para um beco escuro, os ratos corriam de um lado para outro na penumbra mas a lua olhava para mim através da silhueta de prédios decadentes, fazendo-me lembrar de que ainda havia coisas belas no mundo, como um céu cravejado de estrelas. tirei o cantil do bolso — o luar refletindo sobre a prata — e dei uma golada reconfortante, talvez fosse ele o responsável por eu ter ficado, mais uma vez, fora do trajeto das balas e então avistei o meio de transporte que me levaria de volta para casa: em meio às sombras brilhava uma motocicleta gigantesca em cuja placa se lia: "LUCKY." bem, quem era a sortuda ali? subi na máquina, liguei o motor e caí fora daquele lugar. uma noite de trabalho como as outras, e nada mais.

Sra. & Sra. Lopez (Brittana)Onde histórias criam vida. Descubra agora