Delivery de traumas

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Win Metawin


Certo, eu acabei de admitir que estou apaixonado pelo Sarawat, ficamos juntos de um jeito bem íntimo e agora nós estamos aqui, comendo Yakisoba e assistindo Como Eu Era Antes de Você sentados no tapete como se absolutamente nada houvesse acontecido. 

Recebi centenas de mensagens de Emily, Amanda e Matthew perguntando se eu estava bem e que não havia sido sequestrado por ladrões de órgãos enquanto estava bêbado (Amanda que teve essa teoria), respondi que estava apenas de ressaca e que eu e Wat iríamos ficar em casa hoje. O que, por outro lado, permitiu com que eles enchessem meu chat com tantos emojis de coração, diabinho e carinhas safadas que meu celular chegou a querer travar. É sério, eles são insuportáveis às vezes.

Ignorei o restante das mensagens e continuei a comer, enquanto assistia Louisa Clark tentar levar Will para uma corrida de cavalos em Longfield e, como esperado, acaba sendo um desastre. Mas dá para perceber que ela estava mesmo se esforçando para fazê-lo feliz, e até quem sabe desistir de tentar acabar com a própria vida. Trágico, doce e cheio de drama, como a maioria dos romances ingleses.

- você se parece com a Lou - Wat comentou, sem tirar os olhos da televisão, prestando muita atenção a cada cena.

- isso é por causa das roupas estranhas ou pelas ideias horríveis?- dei risada, curioso.

- acho que os dois - ele também ri, dessa vez me encarando rapidamente, antes de voltar a fixar seu olhar no filme (agora Lou está discutindo com uma funcionária do restaurante, que é apenas para sócios do clube de corrida de cavalos) - mas também tem outras coisas…

- deixe eu adivinhar - peguei um copo com suco de laranja, que estava sobre a mesa de centro, e dei dois longos goles - eu me pareço com ela porque tenho a obsessão de tentar fazer todo mundo feliz, não sei absolutamente nada sobre hipismo, faço piadas ruins e sou desastrado na maior parte do tempo. Acertei?

- aham, acertou na mosca!- Wat sorriu - eu por outro lado sou mais parecido com o Will. Bonitão, podre de rico…

-... egoísta, egocêntrico, insensível e com um senso de humor tão ácido e sem-graça que dói até na alma!- completei, o interrompendo. Ele fez uma careta irritada - no fundo acho que os opostos se atraem.

- discordo!- ele resmungou.

- viu só!- dei um sorriso sarcástico - tenho razão!

Voltei a minha atenção para o filme, se bem que meu cérebro estava pensando em mil e uma outras coisas, vagando sem rumo por lembranças antigas. Até chegar naquela lembrança. Eu havia falado sobre isso com Wat hoje mais cedo, não havia? Coisas ruins aconteceram na faculdade. 

Coisas terríveis aconteceram.

Raramente penso muito nisso. Em como as coisas poderiam ter sido diferentes e melhores para mim, se eu tivesse ao menos agido diferente. Se eu não tivesse ido para aquela festa. Já faz muito tempo, acho que mais de dois anos. Nem me lembro quando parei de contar os dias depois disso, tudo simplesmente corria seu curso, as horas, as noites e os dias. Tudo seguiu seu rumo, e me deixei ser levado junto.

Tinha muita bebida, música alta e o lugar estava abarrotado por estudantes de quase todas as áreas da universidade. Era uma típica festa de adolescentes. Não me recordo de como consegui me perder dos meus amigos no meio de toda aquela gente, nem de quantos copos de vodka bebi até perceber que eu estava agarrado e bem próximo com um garoto no meio da festa, não me lembro de quando as piadas e olhares de nojo das outras pessoas se voltaram contra mim. Tudo estava confuso. Mas consigo me lembrar de cada um dos insultos.

Gay nojento.

Tinha que ser boiola mesmo!

Viadinho de merda!

Eram todos para mim. Fechei os olhos apertado, sentindo meu coração bater cada vez mais forte.

As lembranças me transportaram de volta para aquele dia. O olhar de repulsa de quem julguei serem meus melhores amigos, encaravam-me como se estivessem diante de uma aberração. Três rapazes vieram até mim, com um sorriso aterrorizante e pela qual nunca irei conseguir apagar da memória. O que aconteceu depois ainda é difícil para mim aceitar (e recordar). Talvez fosse o efeito da bebida, ou do medo, mas não reagi quando eles me arrastaram para fora da festa, até estarmos bem longe, e nem ao menos lutei ao ser espancado por eles até desmaiar.

Algo morreu dentro de mim naquela noite. Percebi que o mundo real não era como os filmes diziam ser, nem como os contos de fadas mostravam. As pessoas eram cruéis com quem saía fora do padrão e, quando isso acontecia… não era nada bonito de se ver. Como eu iria encarar todos os meus colegas na faculdade depois disso? Como ia conseguir fingir que tudo estava perfeito e normal? Dois dias depois do ocorrido, empacotei minhas coisas e fui embora do campus. E nunca mais olhei para trás.

Construí uma nova vida aqui em Detroit, bem longe de quem eu realmente era. Aos poucos me adaptei, comecei a trabalhar na cafeteria, consegui um apartamento ligeiramente barato, fiz sessões de terapia (sempre às quartas-feiras e as vezes as terças) e lentamente a faculdade se tornou uma lembrança distante.

As horas passaram depressa, terminamos de comer nosso delicioso almoço e o filme estava quase no final. Louisa está a caminho das Dignitas, que fica numa parte da Suíça, com a música Photograph do Ed Sheeran tocando de fundo. Will está lá em um dos quartos, esperando por ela, ao lado dos pais. A despedida deles faz meu coração doer e um aperto se formar na garganta. Na última cena, Lou está em Paris, em um café na Rue de Francs Bourgeois, lendo a carta de Will.

E, quando ela termina de ler o final da carta, sinto que vai ser um pouco mais difícil segurar as lágrimas. Apenas vivacom amorWill. Fim, acabou.

- você está chorando?! É sério?!- me viro para observar Sarawat, que está mordendo a ponta do dedo indicador, com os olhos praticamente boiando nas próprias lágrimas.

- não, é você que está chorando!- ele murmura com a voz embargada, fazendo com que seus olhos fiquem um pouco mais marejados e as bochechas ganhem um tom mais rubro.

- pelo menos eu não tenho vergonha de admitir que tenho sentimentos!- dei risada, me aproximando para mais perto dele.

- ei! Eu também não tenho coração de pedra!- Wat resmunga meio irritado, curvando a cabeça para trás e piscando algumas vezes, numa tentativa de fazer com que as lágrimas voltem para dentro - só não estou muito afim de chorar hoje! 

- e por que não?- perguntei, cutucando a bochecha dele com o dedo, sorrindo.

- porque se eu começar a chorar, não vou parar mais - ele se aproxima de mim, deitando sua cabeça sobre meu ombro. Sua mão alcança a minha, e se entrelaçando uma na outra como se fosse automático.

Sinto sua pele contra a minha, nossos braços se encostando, as respirações tranquilas e os olhares perdidos no horizonte. Eu me sinto inteiro. Como se nós dois fizéssemos sentido. 

- Win…- ele me chama, baixinho.

- oi…

- diz aquilo de novo?- Wat pede, e fico um pouco confuso.

aquilo o que?- dou um sorriso ladino.

- você sabe…-ele sussurra, sorrindo também.

Sim, eu sei exatamente o que é.

Olho para nossas mãos unidas perfeitamente. Feixes de luz amarela entram pela janela e pintam a sala de dourado brilhante. Caixas de comida chinesa estão sobre a mesa, ao lado de copos quase vazios, almofadas espalhadas pelos cantos e o tapete felpudo parece mil vezes mais macio do que antes.

- eu te amo - digo finalmente, fechando os olhos e sendo invadido por uma sensação deliciosa. Felicidade.

- eu também te amo, coelhinho….- Wat responde, sorrindo.

Desconstruindo DetroitOnde histórias criam vida. Descubra agora