Telemarketing das fadas

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Os dias passam depressa, e logo me dou conta de que a vida morando junto com Win mudou bastante. Passamos mais tempo fora de nossos quartos, o que tornou a sala o nosso cantinho preferido para ficar de bobeira, vendo filmes ou conversando sobre qualquer coisa esquisita que conseguirmos pensar. E mesmo quando não falamos nada e ficamos no tapete deitados, olhando para o teto com as mãos entrelaçadas, sinto que, ao lado dele, não há outro lugar no mundo onde eu desejaria estar. 

As ligações e mensagens para Anthony se tornaram cada vez menos rotineiras, chegando ao ponto em que seu número ficou quase que inutilizável na lista de contatos do meu celular. Não tive notícias de mais nenhum dos membros da banda, e também nem arrisquei em querer descobrir se eles ainda estavam me procurando (provavelmente estavam).

Por outro lado fiz novos amigos. Descobri que os conselhos de Amanda são maravilhosos, e qualquer assunto entra na conversa toda vez que ela telefona ou aparece de vez em quando na cafeteria no final do expediente, acompanhada de Josie (uma amiga, até onde eu percebi). Os turnos no trabalho tem continuado os mesmos, sem nenhuma mudança, mas ainda são divertidos.

Em uma semana muita coisa mudou. Aprendi a cozinhar, por exemplo, e agora me sinto cada vez mais em casa. E, de certa forma, Sarawat e Bright acabaram se tornando uma só pessoa.

Acordo no que deveria ser umas cinco ou seis horas de mais uma segunda-feira, está chovendo do lado de fora e sinto que nada nesse mundo seria capaz de me fazer levantar dessa cama. Win está do meu lado, dormindo em um sono pesado, com o cabelo bagunçado e a boca levemente entreaberta. Me ajeito entre os cobertores, de modo que eu pudesse vê-lo claramente. Pode até parecer meio estranho (ou psicopata) mas gosto de observar ele enquanto dorme. Não sei explicar, apenas gosto.

Sempre vi várias princesas nos desenhos animados que, por alguma bênção divina, conseguem ficar bonitas quando estão no meio de um cochilo e até mesmo quando acordam, sem nem estarem descabeladas, com uma maquiagem impecável e sem aquela cara de zumbi que a maioria das pessoas tem ao se levantar. E acho que Win se encaixa nesse padrão de princesa da Disney. Sério, como ele consegue ficar bonito até dormindo?!

Deus deve ter seus favoritos, no final das contas.

Estou quase passando novamente para um sono leve quando Win se mexe, virando para o lado direito da cama e, consequentemente, seu braço acaba acertando meu rosto em cheio. Isso só pode ser brincadeira!

- é sério isso?- resmungo, tirando o antebraço dele para longe da minha cara, e o empurrando para o lado, o que acaba o acordando imediatamente.

- ah? O que foi?- ele me encarou, meio grogue.

- você quase quebrou meu nariz agora!- reclamei, sentindo um incômodo na área onde o braço dele tinha acertado - e qual foi o pacto que você fez para conseguir isso?!

- espera, conseguir o que?- Win murmurou, bastante sonolento e sem entender absolutamente nada do que eu estava falando. Se apoiou nos cotovelos, me observando atentamente, com a cabeça meio curvada para a esquerda.

- você fez um pacto para poder ficar bonito para sempre!- acusei dando um sorriso ladino - acordar desse jeito não é humanamente possível! 

- aham, até parece! É que você não me viu das últimas vezes!- ele deu risada, arqueando uma das sobrancelhas, sem desviar o olhar do meu - tem dias que eu pareço o Grinch quando acordo! 

- então nesse caso quer dizer que essa mágica não funciona sempre?- me aproximei dele, sentindo o aroma de canela que ainda estava impregnado nele desde o dia anterior, quando sem querer acabamos brincando de guerra de comida ao tentar fazer o café da manhã (que por sinal era panquecas com maçã e canela).

Tive sérios apuros ao tentar tirar o cheiro de ovo cru do meu cabelo. Apesar de que limpar a bagunça na cozinha foi mil vezes pior.

- infelizmente não dura!- Win sorriu, também se aproximando, dando um beijo em minha bochecha - até mesmo mágica de contos de fadas tem seu prazo de validade! 

- e quem é sua fada madrinha?- perguntei curioso, me sentando na cama e cruzando as pernas.

- na verdade eu não tenho uma, as fadas madrinhas andam bastante ocupadas na empresa delas - ele deu risada, enquanto eu o olhava com uma careta confusa que parecia dizer: como é que é?! - pois é! Elas vêm todas de uma agência de fadas, antes elas resolviam os problemas das princesas pessoalmente, mas agora preferem usar o telemarketing.

- interessante!- fiz uma expressão séria, como um detetive teria feito - e como faço para conseguir ligar para o telemarketing das fadas?

Win se levantou e se espreguiçou, ignorando minha pergunta. Me levantei também, olhando orgulhoso para as minhas novas e incrivelmente fashion meias com estampa de tubarão (cortesia de Win Metawin). Esse é o lado bom de ter um quase namorado que tem mais ou menos a sua altura: poder pegar as roupas emprestado e nunca mais devolver. E, bem, sobre a parte do quase namorado, não assumimos nada ainda. Bem que, se dependesse de mim, já estaríamos casados.

- se você ficar enrolando, vamos chegar atrasados no trabalho outra vez!- ele reclamou, pegando uma muda de roupa limpa e saindo do quarto - e garanto que nenhum Abracadabra vai te salvar da bronca do Matthew!


Enfiei as mãos nos bolsos da blusa, sentindo meu corpo tremer a cada lufada de ar gélido que soprava contra mim. O inverno estava quase chegando, o que de certa forma me animava um pouco. Gosto de ver a neve cair, adoro tomar chocolate quente e principalmente amo usar blusas e luvas.

Olho em volta. A avenida está menos movimentada do que o normal, os galhos das árvores sacodem com o vento, fazendo suas últimas folhas caírem no asfalto, cobrindo-o por um tapete de folhas e galhos mortos. O céu está cinza, mas ainda consigo ver brechas de azul por entre as nuvens. Win está ao meu lado, caminhando rumo a cafeteria, em um silêncio desconfortável.

Não comentamos nada um com o outro mas, logo ao sair do apartamento, fui invadido por uma sensação estranha. Talvez isso seja só um mal pressentimento, mas mesmo assim não consigo parar de pensar nisso.

Chegamos na cafeteria dois minutos mais cedo, e ao abrir a porta sou atingido por um ar quente, com cheiro de café fresco e o familiar aroma de donuts de creme recém-saídos do forno. Tudo parece estar normal, exceto pela presença de Emily alí. Ela era a última a chegar, e pela expressão dela tenho quase certeza de que alguma coisa estava acontecendo. Ela dá um sorriso fraco ao nos ver, não me abraça (como faria normalmente) e algo em seu rosto me diz que vamos ter sérios problemas.

Win e eu trocamos olhares confusos, mas antes que um de nós pudéssemos perguntar o que teria acontecido, Matthew surge. Seu olhar desvia do nosso, parecendo ansioso, e começo a entrar em pânico.

- se todos pudessem me acompanhar até a sala dos funcionários, eu agradeceria - ele murmura, e então finalmente percebo.

Tem alguma coisa errada...

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