quarenta e sete

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Depois do almoço resolvemos dar uma pausa na organização do quarto e então resolvi ir com ela até o cemitério.
Caminhamos entre os túmulos e logo que ela parou em frente a um deles, vi a foto e notei o quanto ela se parecia com a mãe. Eram idênticas e eu senti um arrepio na espinha por ver o "rosto dela" num túmulo.

— Isso vai parecer maluco - Diz ao me olhar - Não ri.
— Rir do que? A gente tá num cemitério - Digo e ela ri - Louca!
— É que eu gosto de ... conversar em voz alta com ela ... Com o túmulo, enfim.
— Você quer que eu me afaste? Posso ir dar uma volta, lá na rua - Falo e ela ri mais - Para de rir mano.
— Tá com medo?
— Não, nada a ver - Dou de ombros.
— Tá bom - Ri - Mas pode ficar, se quiser, não me incomoda.

Faço que sim com a cabeça e então ela começa a se livrar das flores secas e restos de vela que estavam sob o túmulo.
Ela tira o pano e um líquido da bolsa e senta na grama, bem ao lado e começa a limpar.

— Oi mãe, sou eu - Ri - Óbvio que sou eu. Desculpa ter sumido, mas é que aconteceu muita coisa e apesar de eu conversar com você antes de dormir, eu queria vir aqui. Tenho uma coisa pra te contar, mas você não pode ficar brava, tá? - Pergunta e o vento bate forte, fazendo ela sorrir e então se acalma novamente - Então tá, aquela mulher da casa da esquina de baixo, sabe? - O vento bate de novo, então entendi que ela via aquilo como respostas da mãe e então meu corpo arrepiou - Pois é, ela tava toda se jogando pro meu pai. Eu já disse pra ele que não ligo que arrume outra pessoa, mas aquela mulher não dá, ela é completamente maluca - Ri e para um pouco para encarar a foto da mãe - Esse menino ali é o João - Me olha rapidamente - Ele é um amigo meu, que tem me ajudado muito nesses últimos meses. Ele é meio pancadão das idéias, mas a gente se entende muito. Inclusive, tem uma coisa que eu preciso de contar.

Ela se abaixa bem perto do túmulo e sussurra algo que não consigo entender e mais uma vez o vento sopra forte, fazendo a touca que eu usava na cabeça voar.
Mais uma vez senti um arrepio. Eu não acreditava que aquilo era um tipo de sinal da mãe dela ou algo assim, mas que era algo impressionante eu não podia negar.
Peguei a touca do chão e coloquei na cabeça novamente, então caminhei devagar até mais perto e sentei ao seu lado.

— Vocês são idênticas - Digo e vejo ela sorrir.
— Também acho - Passa a mão na foto da mãe - Ah, ô mãe, já tava esquecendo. A vó e o vô mudaram. Meu pai surtou e queria que eu fosse com eles, cê acredita? - Fala e ri - Mas aí esse maluco aqui teve um surto e acabou que não precisei mais ir. Graças Deus - Suspira - Apesar de não eatar vindo muito aqui, eu não ia conseguir ficar tanto tempo longe de verdade de você. Inclusive, esse ano eu tava pensando em pedir pro meu pai uma árvore de natal nova, aquela lá era de antes de eu nascer, já tá muito velha - Fala rindo - Então se você puder aparecer num sonho e pedir pra ele, eu te agradeço.

Ela pega as flores que compramos e coloca no suporte do túmulo. Eram flores azuis, a cor favorita dela e eu soube em uma conversa aleatória nossa que era a cor favorita da mãe dela também.

— Eu acho melhor a gente ir - Diz por fim - Já vai chover e a gente tá arrumando umas coisas no quarto do João. Eu vou tentar vir com mais frequência, não se preocupa - Passa a mão sob a foto - E prometo tentar trazer o papai no natal, não garanto nada, mas eu vou tentar. Te amo muito mãe, não é porque tô vindo menos que deixei de te amar ou te esqueci, por favor, não pensa isso - Diz com a voz falha - Eu ainda sinto muito a sua falta, ainda dói, só que tô aprendendo a lidar melhor com isso. Eu acho que era isso que você ia querer, não é? - O vento sopra mais intenso mais uma vez - Então, eu tô tentando. Às vezes você me vê fazendo alguma coisa e pode não gostar, mas por favor, não fica triste comigo, eu só tô lidando do jeito que consigo - Vejo uma lágrima dela pingar sob o túmulo - Eu te amo, tá? Te amo muito e pra sempre - Diz e eu sorrio - E por favor, não esquece de aparecer no sonho do meu pai pra pedir a árvore de natal - Fala rindo em meio ao choro - E se você quiser que eu venha aqui pra gente conversar, vem num sonho meu também. Faz tanto tempo que você não aparece, eu também sinto falta da sua presença, então se quiser aparecer ... Enfim, nós já vamos - Corta o choro - Te amo mãe, fica com Deus.

Ela se levantou e sorriu pra mim, então recolheu as coisas que tirou pra limpar e guardou novamente na mochila.
Antes de levantar também, dei uma última olhada no túmulo e o mesmo arrepio me percorreu ao ver a foto.

— Não se preocupa, eu vou cuidar dela - Digo inesperadamente e mais uma vez sinto o vento se intensificar.
— Ela sabe que vai - Violetta diz sorrindo.

[ ... ]

𝙖𝙣𝙩𝙚𝙨 𝙙𝙤 𝙩𝙚𝙢𝙥𝙤 𝙖𝙘𝙖𝙗𝙖𝙧 ⏳ • konaiOnde histórias criam vida. Descubra agora