sessenta

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Por volta de uma da manhã, o pai dela foi embora, mas deixou ela ficar até mais tarde um pouco.
Ajudamos minha mãe a guardar as comidas e então ela e meu padastro subiram e nós ficamos na sala.

— Não posso nem dar uma espiadinha no meu presente? - Pergunto.
— Não - Diz rindo antes de comer mais uma colher da sobremesa.
— O que você tem?
— Nada, porque? - Me olha, estávamos sentados de frente um para ou outro no sofá.
— Tô te achando tão quietinha. Foi alguma coisa que eu fiz?
— Não, claro que não - Sorri enquanto coloca o prato sob a mesa de centro - É só que ... Natal me lembra muito a minha mãe, é o dia do ano que eu mais sinto falta dela.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela fechou os olhos e respirou fundo e então às lágrimas começaram a rolar. Ela não abriu os olhos, na verdade ficou um bom tempo assim, como se estivesse absorvendo alguma coisa, mas o choro não parava.

— Eu tenho certeza de que ela estava aqui com a gente hoje - Digo.
— Você nem acredita nessas coisas - Fala rindo em meio ao choro e finalmente abre os olhos.
— Mas eu sei que ela tava - Pego na mão dela - Ela tá sempre com você, em todo lugar. Ela é parte de você.
— Eu te amo por tentar me fazer sentir melhor - Sorri secando as lágrimas.
— Você quer ir no cemitério? - Pergunto e eu mesmo me surpreendo.
— Tá falando sério?
— Só só se você quiser, às vezes pode te fazer sentir melhor. É a sua época favorita do ano, você deveria estar feliz.
— Você tá certo - Sorri - Me desculpa por estar assim.
— Não se preocupa, eu quero que você seja sincera comigo, com tudo o que sente - Digo e ela força um sorriso - Você quer ir?
— Quero - Sorri.

Mandei uma mensagem avisando a minha mãe que ia levar ela em casa e que talvez fosse demorar, então peguei minha bicicleta e a carreguei em direção ao cemitério.

•••

Assim que chegamos, percebi que às luzes estavam todas acesas e na verdade haviam muitas pessoas ali, me fazendo entender que talvez fosse mais comum do que eu pensava, passar o natal no cemitério.
Caminhamos em direção ao túmulo da mãe dela e percebi que tinham flores frescas ali.

— Foi pra cá que você veio a tarde? Quando a Lara ...
— Não quero falar disso agora - Diz num tom mais triste.
— Tá, desculpa - Beijo a testa dela e então ela sorri.

Sentamos ao lado do túmulo e ela pousou a mão sob a foto da mãe dela, então fechou os olhos e respirou fundo, não demorando para o vento sobrar um pouco mais forte.
Eu realmente não acreditava nessas coisas "sobrenaturais", mas também não tinha uma explicação para o que acontecia quando ela tentava falar com a mãe e o vento reagia. Talvez fosse só coincidência, mas ainda sim era loucura.

— Oi mãe, feliz natal - Fala abrindo os olhos - Eu queria te pedir desculpas pelo que aconteceu a tarde e por não ter falado com você, mas agora eu tô melhor - Sorri - Queria te agradecer por ter convencido meu pai a comprar uma árvore de natal nova - Diz rindo e eu me lembrei do pedido dela - A gente passou esse ano na casa do João, com a família dele, foi bem legal, mas ainda sim faltou você - Diz e meu coração aperta - Eu sei que disse que tô tentando lidar com a sua falta, mas mãe, eu não tô conseguindo.

Ela voltou a chorar e eu pensei em dizer algo, mas sabia que aquele momento era delas e eu não queria atrapalhar.

— Hoje eu precisei tanto de você aqui, você não faz idéia do quanto. Eu sei que eu tenho meu pai e o João, mas não é a mesma coisa, sabe? Eu queria um abraço seu, um conselho, sei lá. Eu só queria você aqui, você era a minha única amiga mãe, porque você tinha que ir? E foi por minha culpa - Chora ainda mais.
— Não fala isso - Digo passando a mão nas costas dela - Não foi sua culpa.
— Foi João, foi sim - Suspira - Mãe, você me desculpa por isso? Eu nunca quis que chegasse nesse ponto, mas você me entende, não entende? - Pergunta e o vento bate forte - Mãe, eu precisei fazer isso, não queria, mas ... - É interrompida por um vento tão forte que precisamos fechar os olhos pela intensidade.
— Acho melhor a gente ir - Digo quando o vento se intensifica cada vez mais - Parece que vai chover.
Ela tá com raiva de mim - Diz chorando.
— Lógico que não, não fala isso.
— Ela tá João, eu fiz uma coisa que sabia que ela não ia gostar - Chora ainda mais - E agora ela tá com raiva de mim.
— O que você fez?

Ela não me respondeu, apenas me abraçou forte e chorou mais. Devagar fui me levantando ainda abraçado com ela e caminhei devagar em direção a saída. Estar ali não fez bem pra ela e eu estava me sentindo culpado por ter sugerido.
Depois de alguns minutos, ela se recompôs e então fomos em direção a casa dela.

•••

— Tá mais calma? - Pergunto quando sentamos na calçada em frete a casa dela.
— Sim - Sorri fraco.
— Você não quer me falar o que você fez? Que deixou a sua mãe chateada?
— Agora não, depois eu te falo - Suspira - Me desculpa por isso, eu só ... Sei lá.
— Tá tudo bem - Abraço ela de lado - Só queria que você tivesse me falado que tava assim, você sabe que pode conversar comigo sobre tudo, não sabe? Você me ajudou a melhorar e eu quero que você fique bem também.
— Eu vou ficar, logo - Sorri - Só preciso de mais tempo.
— A gente tem todo tempo do mundo - Beijo a cabeça dela.
— De verdade, você tá mesmo feliz? Tipo cem por cento feliz? - Me olha.
Mil por cento feliz - Digo e ela sorri - Como nunca estive antes.
— É o que eu mais quero, que você fique bem e feliz - Diz - Eu te amo tanto, meu pancadinha.
— Também te amo, Dory maluquinha - Digo e ela ri - O que você quer fazer agora?
— Só ficar aqui, com você. Pode ser?
— Sim - Sorrio.

Abracei ela mais firme e então ficamos ali, na calçada, em silêncio só aproveitando a companhia um do outro.

[ ... ]

𝙖𝙣𝙩𝙚𝙨 𝙙𝙤 𝙩𝙚𝙢𝙥𝙤 𝙖𝙘𝙖𝙗𝙖𝙧 ⏳ • konaiOnde histórias criam vida. Descubra agora