Capítulo 17

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— Vai ficar brincando com o prato ou posso retirá-lo?

Cabisbaixo, Renan desdenhava o comentário jocoso da irmã.

Ao vê-lo naquele estado, Nicole tirou o pano das mãos e as repousou no braço do rapaz.

— Quer conversar a respeito de ontem à noite?

Renan a fitou com um olhar reticente durante alguns instantes, até finalmente se manifestar, balançando a cabeça em sinal de anuência.

— Pois bem, jovenzinho! Antes tem que prometer que irá se servir do café da manhã especial que preparei.

— Pensei que toda refeição que prepara fosse especial.

Ver Renan sorrindo foi um bálsamo para Nicole. Desde que eles passaram a interagir como humanos, os dois seres espirituais tiveram que lidar com um misto de sentimentos que nutriam um pelo outro, algo que afetou a essência de Uzá, agora como mortal. Experimentava naquele momento algo entre a ansiedade e a compaixão.

— Isso mesmo. E lembre-se que você está na pele de um ser terreno, sujeito a gastrite, anemia e toda sorte de moléstia humana.

— Que papo é esse, Nick? Parece até um velho hipocondríaco.

— Chega de seus subterfúgios angelicais. Desabafe logo ou então...

— Tá bem!

Nos minutos seguintes, Renan relatava como conheceu a mãe de Jordana em sua última missão na Terra, após um acidente automobilístico onde uma das vítimas era um de seus protegidos.

Algo incomum o atraiu naquela humana, de beleza enigmática e, ao mesmo tempo, de uma fragilidade desconcertante.

Foi impelido por uma sensação de desamparo que ela transmitia, assumindo a forma de um homem maduro. O primeiro de seus sacrilégios na Terra.

Algum tempo depois dentro daquele relacionamento proibido, a realidade veio à tona.

Quando achou que estava preparada para assumir o romance com Azael, Antônia revelou a ele ser casada, embora estivesse em processo de divórcio com o marido, e ter uma filha pequena à época.

Apavorado, diante daquela revelação, Azael fugiu, sem despedir de Antônia. Sabia que tinha levado aquela loucura longe demais. Como ele seria capaz de suportar o fato de ser responsável pelo fim de um matrimônio? De que modo um anjo supriria o papel de um pai humano?

— Quem diria, hein? A mãe de sua namorada é uma papa anjo...literalmente!

— E você não colabora nem um pouco com este tipo de comentário.

— Calma, maninho. Só queria te divertir um pouco. Tirar essa expressão de velório de sua cara.

Renan deteve-se por um tempo em seus devaneios, até proferir algo que lhe ocorrera:

— O que faz os humanos tão fascinantes é a beleza efêmera de sua existência, mesmo ao ignorarem a precariedade das vidas passageiras que levam, como um sopro da brisa cálida no orvalho da manhã.

— Então foi assim que se apaixonou por Tônia — afirmou Nicole.

— Ela aprendeu a lidar com a vida após minha partida. Como dizem os seres humanos, isso agora são águas passadas — desconversava Renan.

— Daí você voltou às suas atribuições de anjo da guarda, como se nada tivesse acontecido.

— Não exatamente. Esqueceu-se que meu superior é o Arcanjo-Observador?

— Mas é claro! Aquele dissimulado do Cassiel...

— Nicole!

— Ok. Prossiga — a moça recuou, ante a reprimenda do irmão.

— O Mestre marcou uma audiência comigo. Admitiu que já sabia do meu flerte com uma mortal.

— Não era só um flerte. Você estava apaixonado mesmo pela Tônia, né?

Renan já demonstrava incômodo com as seguidas interrupções de Nicole, mas preferiu não externar.

"Depois de décadas de existência mortal, você termina inexoravelmente entrevado em um leito, sob a sombra da glória de outrora e do ostracismo do ocaso. Tendo apenas a vaga lembrança como sua algoz companheira...", refletia o rapaz, tentando se convencer, mais uma vez, de que havia tomado a melhor decisão em prol de todos os envolvidos.

Já Nicole ficou matutando sobre a confidência de Renan. Não conseguia entender como ele não teve a audácia de enfrentar todas as convenções astrais pelo amor que sentia por Antônia.

Só que havia um pensamento mais perturbador rondando a cabeça da moça.

Segundo o que ela apurou, foi a partir da separação dos pais que Jordana apresentou piora de seus distúrbios de personalidade. No entanto, Nicole achou mais prudente guardar essas impressões para si.

Após alguns minutos de silêncio constrangedor, a moça dispôs-se a mudar o foco da conversa:

— Você ficou de me falar ontem sobre a Renée. De onde você a conhecia? E por que a chamou de Pérola, naquele dia lá na CAPEV?

Renan narrou então à irmã que era anjo da guarda de Renée, quando ela atendia, ainda criança, pelo nome de Pérola.

Aos seis anos de idade, a menina presenciara uma chacina dentro da própria casa em que residia, na periferia de Fortaleza. Seu tio Pablo, um usuário de drogas, acumulava dívidas com traficantes locais. Como ele também costumava praticar pequenos roubos na região, as autoridades não sabiam ao certo se seus executores poderiam também ser milicianos que agiam nas redondezas.

O fato é que toda a família de Pérola que morava naquela casa humilde acabou perecendo no massacre. Avó, mãe, tios, primos. A própria menina integraria a lista das vítimas fatais, se não tivesse se enfiado, por instinto, debaixo de sua cama ao som dos primeiros estampidos.

Sob a forma etérea, Azael ficou a todo tempo com Pérola desde a tragédia, até que, semanas depois, a equipe de proteção de testemunha a levasse para um local seguro, tão logo encerrara os depoimentos à menina.

Antes de receber uma nova incumbência, o anjo tomou conhecimento de que a garota havia sido adotada por um casal de outro estado e mudado de identidade, a fim de garantir sua segurança.

De súbito, o relato de Renan foi interrompido por um bipe insistente.

— É o Edu. Queria fazer um passeio comigo agora de manhã — justificava Nicole, enquanto respondia a mensagem do rapaz pelo celular.

— Vocês fizeram as pazes? — Indagava um apreensivo Renan.

— Acho que este convite é um sim, né?

Entre o Céu, a Terra e o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora