Capítulo 34

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— Nossa. Vocês estão com cara de quem não pregou os olhos nesta última noite.

— O que acha, Edu? Eu, quase lançado na fogueira por um bando de surtados lá no Ipê Mall, enquanto comemorava nosso título na final de ontem. Tudo isso, só porque ofereci algo de comer para uma pobre indigente mirim que me abordou. A seguir, fui saber da internação às pressas da Jordana, depois de uma intoxicação alcóolica severa que ela sofreu durante o evento rítmico das garotas. Esqueci alguma coisa?

Sentadas na mesa da saleta da biblioteca que já servia de QG do grupo, Carla e Nicole limitaram-se a responder a verborragia de Renan com um acenar negativo de cabeça.

— É, essa noite foi bem intensa para vocês. E ainda tiveram as notícias do caso Rasputin, divulgadas pela imprensa à exaustão.

— Nem fale! Como se não bastasse, existe também esse maníaco à solta — externou Renan, reclinando a cabeça para trás até observar o teto.

Já Nicole era atormentada pelos acontecimentos da última noite, com os sermões de Dona Tônia no hospital ainda ecoando em sua mente, até que não fosse mais capaz de conter a angústia:

— Alguém tem novidades sobre a Jordie?

— Minha mãe... — adiantou-se Eduardo, logo se corrigindo — ...Dona Guta, como não poderia deixar a oportunidade passar, sondou alguns conhecidos que trabalham no hospital, assim que tomou conhecimento da história. Pelo que revelaram a ela, Jordana já estaria desperta, com previsão de alta nas próximas horas.

Carla complementou a informação do amigo de infância:

— Dona Genoveva tem um laço de amizade de longa data com a família materna de Jordana. No que pude acompanhar da conversa dela com minha mãe, hoje mais cedo, o pai de Jordana, o tal delegado Paredes, já estaria aproveitando da situação para denunciar alienação parental por parte da ex-mulher e reclamar a guarda integral da filha na justiça.

Sentimentos difusos se apoderaram de cada um dos jovens a partir daquelas notícias, fruto da incerteza do que o destino reservaria à amiga deles de agora em diante. Nova internação? Transferência para outro colégio? Mudança compulsória para a casa do pai?

— Detesto ter que dizer isso, mas eu avisei a vocês que lidar com a complexidade da natureza humana não era brincadeira.

Ambos os irmãos Comparato se sentiram atingidos por aquelas constatações de Carla, embora apenas um deles tenha decidido reagir, perante olhares trêmulos. Era Renan:

— Devemos buscar ser mais proativos nesta nossa missão.

— "Sua" missão e da Nicole. Não "minha". Menos ainda do Edu.

— O que você está fazendo aqui então, Carla?

— Além de ter que proteger meu amigo, Renan?

— Não preciso de babá — Eduardo interveio, com voz seca.

Ignorando a reprimenda do amigo, Carla prosseguiu:

— Como já notaram, Edu é um garoto impressionável. Temo sim pelos efeitos deste joguinho de "Céu e Inferno" sobre a vida dele.

— Seria só isso mesmo, Carla? — Nicole finalmente se manifestava.

— O que pretende insinuar, Nick?

— Ora, você mesmo adora arrotar aos quatros ventos sua perspicácia investigativa.

Carla replicou a colega, buscando impor um timbre imperturbável à declaração que faria:

— Desculpe, se não fui persuasiva o bastante no meu primeiro argumento. Tem também o fato de você não levar os sentimentos dos outros a sério. Flertou com Edu, seduziu o Hugo...

— Ah, qualé! Nem estou usando mais roupa curta...

— A conduta das pessoas vai muito além de seu vestuário. Se ainda não entendeu isso, sinal de que ainda tem muito o que aprender do comportamento humano — Carla cravou, sem piedade da colega.

— Bem contraditório essa reprimenda, partindo de alguém que se diz adepta do "amor livre".

— E o que um demônio entende de amor?

Em outras circunstâncias, Renan teria intercedido a favor de Nicole naquela discussão entre a irmã e Carla, como ato de lealdade a uma companheira de missão. O pensamento do rapaz, entretanto, centrava-se em algo mais delicado. As desventuras que marcaram seu efêmero relacionamento com Jordana.

Um abismo se formou entre os quatro jovens, só se dissipando quando, por fim, Eduardo dirigiu-se aos colegas:

— Pessoal, melhor ficarmos atentos a partir de agora.

— E porque deste alerta, Edu? Viu algum amiguinho do além, fora esses dois?

Mesmo diante do tom zombeteiro da amiga, tão conhecido por ele nesta longa convivência de altos e baixos, Eduardo sabia da importância daquilo que tinha a declarar. Por tudo que estava em jogo. Por todos que amava.

— Tive um...pressentimento.

Antes que pudesse compartilhar seus temores, o toque da sineta do colégio o interrompia, anunciando o término do período livre no turno da manhã.

Os jovens logo se dispersaram, rumando cada um para a respectiva sala onde aconteceria sua próxima aula.

Durante a aula de física experimental, Nicole e Carla se evitavam, como resultado do embate entre as duas, minutos antes.

Enquanto se debruçava na bancada, tentando concentrar-se no ensaio, Nicole percebeu olhares projetados para si.

Eram os colegas da bancada em frente, que cochichavam uns com os outros. No centro, a figura exultante de Cínthia.

"Na certa, estão a fofocar sobre o episódio na casa noturna", deduzia Nicole, ao mesmo tempo em que balançava o bracelete em um chacoalhar acintoso, fazendo esvair a empáfia até então contida no semblante da rival.

Naquele momento, batidas na porta ecoaram pela sala.

Tratava-se de Camélia, secretária de Dona Pilares, transmitindo um recado para a professora.

— Senhorita Carla Arruda. Queira comparecer à sala da diretora. Imediatamente — anunciou a mestre, com ar grave.

A jovem mal havia se retirado do laboratório, na companhia de Dona Camélia, e Cínthia já teclava algo frenético em um aparelho por dentro da bolsa, sob os olhares atentos de Nicole.

"O que você está aprontando desta vez, sua vaca?"

Enquanto Nicole especulava a respeito dos planos em curso de Cínthia, Carla e Camélia avançavam a passos largos pelos corredores do Sideral. No trajeto taciturno, a secretária fazia de tudo para evitar contato visual com a estudante, até finalmente chegarem à ala onde se situava a direção do colégio.

Após duas leves batidas na porta com os nós dos dedos, Camélia a entreabriu, posicionando a cabeça pela fresta.

— Senhora Pilares, a menina Carla está aqui.

— Muito bem, Dona Camélia. Diga a ela que entre.

Antes mesmo de confrontar a fisionomia austera da diretora ao cumprimentá-la, Carla presumia a gravidade da situação. Afinal, era incomum a secretária escoltar qualquer aluno da sala de aula à diretoria.

Assim que Camélia retirou-se do recinto, fechando a porta, a diretora Pilares voltou suas atenções à Carla:

— Sente-se, senhorita Arruda. Temos um assunto muito sério a tratar. Mais especificamente sobre uma denúncia anônima, envolvendo seu nome.

Entre o Céu, a Terra e o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora